CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA
Minha Princesa de mim:
Ontem ainda, falava pelo telefone com velho amigo meu sobre o meu incómodo com a impressão que me faz uma igreja clerical, que me parece muito mais preocupada com observâncias canónicas, rituais e institucionais, do que movida pela urgência da abertura do nosso pensarsentir ao espírito de vida, que sopra tudo em todos. Nas cartas que, com alguma fidelidade e franqueza, te vou escrevendo já muitas vezes te falei da minha vivência do cristianismo como libertação de tudo o que possa entravar um caminho de comunhão com o vero-belo-bom. Esta manhã, bem cedinho, madrugada ainda, quedei-me a ler e meditar trechos de uma entrevista do quase nonagenário François Cheng, chinês só, até aos vinte anos, sino-francês paulatinamente criado, desde então, membro da Académie Française, pai de Anne Cheng, sinóloga de nomeada, professora no Collège de France. Recolhi e traduzo para ti passos da resposta de François (nome cristão que escolheu pelo exemplo de São Francisco de Assis) à pergunta do Philosophie Magazine sobre a sua descoberta de Assis, acerca da qual escrevera «C´est là que mon exil va prendre fin». Trata-se de uma conversão? - pergunta a entrevistadora Catherine Portevin. Resposta:
Não totalmente, pelo menos no sentido que lhe dão Claudel ou Pascal. Se, em mim, a via taoista e a via crística não se excluem, é em razão dessa visão comum assente na ideia de Via, um processo de devir que conduz, não ao encerramento ou ao nada, mas ao Aberto. O taoismo tem uma visão organicista do universo vivo onde, animadas pelo sopro primordial e os sopros vitais que dele decorrem, todas as entidades se ligam e se sustêm. As transformações que se produzem entre elas constituem o próprio movimento do Tao-«Vida», movimento sempre puxado para cima. Esta visão de um universo em devir, nenhum chinês se dispõe a abandoná-la, seja ele taoista ou confucionista, torne-se ele budista, marxista ou cristão.
Pelo que me toca, embora dizendo que desposei a via crística, devo precisar que não me situo em relação a uma instituição religiosa ou a uma crença. Trata-se de uma adesão a uma verdade de Vida incarnada. Foi tardio, na minha vida, o verdadeiro encontro com Cristo. Tal se deve, em parte, a um conjunto de factos históricos que nublaram a imagem de Cristo e, por outro lado, ao meu tortuoso itinerário, bem cedo marcado por acontecimentos trágicos...
E François Cheng conta então os factos e suas traumáticas consequências que, a partir de 1937, tinha ele então apenas oito anos, o afetaram: invasão da China pelo Japão, o massacre de Nanquim, a guerra civil chinesa que se lhe seguiu até ao triunfo de Mao Ze Dong, todo um cortejo de horrores, o mal como vento a varrer vidas e bens, a apagar o próprio sentimento da dignidade humana. E prossegue:
Aprendi mais tarde que a crueldade sem limite é um facto inerente a toda a humanidade. Seja como for, a minha jovem alma já sabia que nenhuma verdade de vida seria válida se não respondesse de maneira absoluta aos dois mistérios instalados nas duas extremidades do universo vivo: o mistério da sublime beleza e o do mal radical. Quando me encontrei com Cristo, disse para comigo: «Já aconteceu». O quê? Alguém veio e viveu entre nós. Disse palavras e fez gestos sem qualquer semelhança com outros, e depois, em nome duma transcendência a que chamava Pai, deixou-se pregar numa cruz. Num único ato juntou as duas pontas da verdade: afrontou o mal radical e, simultaneamente, mostrou que o bem absoluto - o amor absoluto - existe. Passou por essa morte que se revelara indispensável. Eis a sua maneira de vencer a morte: oferecer uma Via aberta ao destino humano. Nisso, ele não é apenas uma vítima expiatória, pois mudou a própria natureza da morte, transfigurou-a. Antes dele ninguém fora tão longe. Depois dele, jamais alguém irá além. Na continuidade do tempo humano produziu-se efetivamente um corte: antes dele e depois dele. Quanto a mim, sem esta resposta crística, não sei se poderia viver com o problema do mal.
Se recordares, Princesa de mim, as cartas em que te falava do mal e do absurdo, da coexistência do mal radical e do bem absoluto, este só podendo ser o amor absoluto como vocação da humanidade inteira, a vida tendo apenas sentido quando a anima o amor que vence a própria morte, entenderás agora melhor a comoção profunda com que me encheram a alma e a manhã estas palavras da vocação cristã dum taoista. Por isso, com elas também, que só são minhas porque como tal as tomo, te encho esta carta. Que aqui termino, com o final da entrevista de François Cheng:
A Vida é a única aventura acontecida no universo, não há mais nenhuma. Ela não nos pertence: pertencemos-lhe nós. Sem essa aventura, não seríamos. Todavia, sem nós, a aventura, privada de conteúdo, também não seria. Somos capazes de pensar o universo, porque em nós o universo pensa. Presentemente, quando até temos o poder de interromper o próprio processo vital, é grande a responsabilidade que nos compete. Será bom lembrar que como princípio a Vida é uma Via aberta e ascendente. A Morte é uma lei imposta pela Vida, para que esta possa renovar-se, transformar-se e aceder a outra ordem de ser. Aceitemos com humildade tal mistério.
Camilo Maria
Camilo Martins de Oliveira