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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

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     Minha Princesa de mim:

 

Alertas-me para um prolongado silêncio meu, como se as minhas cartas falassem e eu te faltasse com a minha conversa fiel. Esqueces que, neste voluntário retiro, além dos milhares de livros que vou arrumando ou dispondo - em benefício, espero, de quem os possa apreciar - cozinho os petiscos quotidianos... Primum manducare, deinde philosophare, diriam os antigos, e eu, pobrecito, nem à filosofia chego, só procuro tratar de mim... Também recolho, escolho e dou abrigo mais seguro a muitos documentos da vida passada da nossa família, e da minha própria, não tanto por gosto de colecionar memórias, como pela serenidade de uma comunhão intemporal. E é bem verdade que o intemporal talvez nos tire muito tempo...

 

Dou comigo, muitas vezes, a entrelaçar lembranças e descobertas várias, tantas delas insuspeitas de qualquer relação entre si...ou comigo! No fundo, talvez dê por mim a dizer, com o Alberto Caeiro, que a espantosa realidade das coisas / é a minha descoberta de todos os dias. Aliás, dei novamente com estes versos hoje mesmo, evocados por José Mattoso no seu prefácio, de 13 de abril de 1985, à Identificação de um País, que começa assim: Este livro nasce de uma insatisfação: a de não encontrar na historiografia portuguesa atual respostas para muitas interrogações que a moderna ciência histórica não pode deixar de colocar. Tentei dar as minhas e coordená-las num conjunto que constituísse uma visão global da História de Portugal durante os seus dois primeiros séculos. A minha curiosidade orientou-se especialmente para os homens concretos, a sua maneira de viver e de pensar [...] o que mais me atrai no passado medieval é a mentalidade: como é que os homens viam o mundo e se organizavam para tentarem dominar a realidade, nessa época tão diferente da nossa?

 

Tu também sabes, Princesa, como eu sempre pensossinto a constante mudança das coisas: a vida, o mundo, tudo é movimento, e quando olho para pessoas ou para povos, pela perspetiva do que chamamos História, melhor me apercebo de quão dinâmica, afinal, dialética mesmo, é a ideia ortegana de sermos e sermos a nossa circunstância. Assim, o conceito hegeliano de que die Weltgeschichte ist das Weltgericht deve ser só tomado no sentido de que os efeitos apurados dos factos produzidos são os únicos juízes destes, a História não podendo ser tribunal como se se pudesse julgar o passado por critérios presentes e retroativos... E sabemos quanto atos, factos e seus efeitos vão padecendo de mui diversas interpretações.

 

A História, como um dia disse João Ameal, é a nossa vida antes de nós, sim, mas tal não tem de tornar esta necessariamente gloriosa, nem vergonhosa: as lições da História não são gabanços nem pedidos de desculpa, podem, quando muito, e devem ser ensinamentos da escola da vida.

 

Qualquer povo tem uma história passada - a dos seus seniores - mas, essa mesma, não são os hodiernos que a fazem, é, tão simplesmente, um da sein que herdaram. É dele, de dantes, mas está aí, já feita. E dou aqui, mentalmente, o salto até uma resposta, há pouco lida, de Onésimo Almeida à revista LER, que lhe perguntava se, afinal, o carácter nacional não existe: Não, e deveríamos acabar com conceitos desse género. Não é possível, para qualquer povo, generalizar seja o que for. Nem nunca, em nenhuma época, toda a gente pensa e age da mesma forma, nem nunca, através dos tempos, uma nação se comporta da mesma maneira. Quer dizer que não se pode generalizar, nem diacrónica nem sincronicamente.

 

Ocorreu-me então algo que vou pensandossentindo acerca do modo como eu mesmo e muitos dos meus amigos fomos cultivados no ambiente de "uma certa História do Grande Portugal", algo que tanto me foi remoendo pelo convívio que tive, durante a minha longa estadia no Japão, com versões claramente míticas - para um estrangeiro que eu era - da História nipónica, sobretudo das origens do povo e da estirpe divina da linhagem imperial.

 

Não te esqueças de que até Wenceslau de Moraes escreveu um Dai Nippon (Grande Japão)... Como sabes, já amiúde falei sobre isso. Mas nunca me "psicanalisei" disciplinadamente no tocante ao meu entranhado sentimento de português enquanto filho de uma nação gloriosa, única, diferente de todas as outras. Pensossinto "Portugal", e vibro! Mas a leitura de obras hodiernas, de historiadores estrangeiros e portugueses, dos tais cuja curiosidade - repetindo o dito de José Mattoso acima citado - se orienta especialmente para os homens concretos, a sua maneira de viver e de pensar, ao ponto de os levar a procurar e consultar outras fontes - até agora esquecidas ou ignoradas, quer por razões políticas ou ideológicas, quer por tradicional desconhecimento de estranhas línguas e culturas - para acharem novas perspetivas e, acima de todas elas, uma visão mais global, muda-me o sentir da História, das nossas vidas antes de nós, com as suas circunstâncias. Não já só "nós", os Portugueses, como pioneiros e condutores, mas todo um vasto mundo, povoado por outros, com que sucessivos lusos foram interagindo.

 

Dias atrás, falava com alguns amigos sobre um livro que há já uns anos me encantou, ao ponto, aliás, de dele ter adquirido vários exemplares para oferecer - incluindo alguns na sua bela edição francesa - a conhecidos, amigos e, - vieillesse oblige - aos inescapáveis netos. Trata-se de A Aventura das Plantas, do Prof. Eng.º Mendes Ferrão, famoso catedrático do Instituto Superior de Agronomia de Lisboa, reconhecido internacionalmente. Tive o grande gosto de o conhecer em 2004/5, quando recorri à sua sapiência para melhor me informar sobre a globalização das plantas que surgiu com a aventura da descoberta de caminhos marítimos entre todos os continentes, tema que decidira abordar em exposições e sessões públicas a realizar no pavilhão de Portugal na Exposição Universal de Aichi (Japão), de que eu era Comissário Geral. Um dos meus convivas referiu então um artigo recente de Guilherme d´Oliveira Martins que diz: "As Surpresas da Flora no Tempo dos Descobrimentos" de Alfredo Margarido (Elo, 1994) constitui uma excelente oportunidade para compreendermos como os portugueses fizeram mudar os hábitos do mundo, alimentares e outros, mercê das viagens para outros continentes.
Os "negritos" são meus - já perceberás porquê. Antes, todavia, deixa-me dizer-te que, com muito gosto lusíada contei a aventura das plantas aos meus netos, por ela ser um dos mais antigos e persistentes sinais do que afinal a globalização é ou pode ser na vida quotidiana e comezinha das pessoas. Mas quantas vezes lembramos, ou quantos de nós sabem, que não se cultivavam nem comiam batatas, feijões ou tomates na Europa, antes das grandes viagens?

 

História fascinante, tetra secular, elucidativa, divertida, consoladora de humanidade... Quem mudava, então, as plantações de legumes e frutos no mundo de todos, era essa mancha de gente de muitas paragens, muito ou pouco ou nada sábia, a mor das vezes sem mais pertença do que qualquer obediência consciente ou instintivamente devida, que andava embarcada. E não eram só portugueses...

 

Já a razão dos meus "negritos" tem a mesma raiz dos que mostro de seguida, por mim postos num anúncio da Fundação e Museu do Oriente: Os Portugueses na Ásia na Segunda Metade do Século XVII  -  curso administrado por João Paulo Oliveira e Costa  -  dá a conhecer o panorama político, económico e sociocultural da Ásia sob a influência portuguesa.

 

No mesmo ou em dia próximo daquele em que recebi esta notícia, lera eu no Público uma entrevista a Eduardo Lourenço, em que este, a dado passo, afirmava: Portugal não é uma ilha, mas vive como se fosse. Talvez por uma determinação de quase autodefesa. O que me admira mais não é a preocupação constante que temos em saber qual é a figura que fazemos no mundo enquanto portugueses. Todos os países terão à sua maneira essa preocupação. É o excesso dessa paixão. É preciso que não estejamos a viver um Ronaldo coletivo, um "nós somos o melhor do mundo"... E, mais adiante: Fomos os primeiros que largámos da Europa para ir para um sítio mítico, só conhecido através de novelas, como as de Marco Polo. De repente, deslocamo-nos do ocidente europeu e demos a volta a África - demos..., deram eles, os navegadores, porque eu não tenho um pé marítimo propriamente dito - para chegar à Índia. E foi como chegar a outro mundo, descobrir outro planeta, e durante dois séculos a nossa capital era mais fora de nós do que dentro de nós. E sempre nos habituámos a que essa imagem que adquirimos num lá fora hípermítico fosse tão universal que ninguém podia não saber que nós lá tínhamos chegado... Há aqui, nesta análise de um nonagenário, muita cândida lucidez. Que, quanto a mim, me levou sobretudo à intuição de que as mitomanias nos podem conduzir a algo que eu definiria como "narcisismo nacional"...

 

          Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira