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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

   No 1º de maio de 1539, morria Isabel de Portugal, imperatriz, mulher de Carlos V, mãe de Filipe, o 2º de Espanha, 1º de Portugal. Muito para além do que as alianças dinásticas, e respetivos objetivos e consequências políticas, determinaram na vida desta mulher, sobressai o acontecimento raro, menos esperado do que inesperado no seu tempo, de a filha do rei Dom Manuel I de Portugal ter amado e admirado, e sido reciprocamente amada e admirada, pelo soberano mais poderoso da Europa. Mais ainda : de ter granjeado a confiança e a fidelidade dos seus súbditos, como vassalagem de liberdade amorosa, só comparável - se possível - à que lhe prestava o imperador seu marido. Correndo o risco de ser repetitivo, pois tantas vezes te falei de tudo isso, volto ao tema, que até a mim mesmo inspirou um soneto. Hoje, ater-me-ei ao clima que rodeou a morte da imperatriz e, além de outras referências voltarei a transcrever-te um poema da Sophia, que reincidentemente te recitei, por sabê-lo de cor. Esta tarde achei, arrumando discos de música, a missa Mort m´a privé, composta, em 1540, por Thomas Crecquillon, um franco flamengo, mestre de capela de Carlos V que, ao que parece, a teria feito executar no seu retiro no mosteiro dos jerónimos de São Justo, ou Yuste, local para onde levara também os retratos e quadros alusivos a Isabel de Portugal que encomendara a Ticiano. Mas noutra carta te falarei do imperador e sua abdicação. O título da missa vem de um moteto cantado, primeiro a cinco, depois a quaro vozes (respetivamente evocando Carlos e Isabel), canções que se seguem ao "ordinário"  (Kyrie, Gloria, Credo, Sanctus, Agnus Dei), poema quiçá inspirado numa carta de Carlos V a seu irmão Fernando, refletindo um sentimento muito íntimo sobre a morte de Isabel. Reza assim: 

 

          Mort m´a privé par sa cruelle envye

          D´ung medecin congoinassant ma nature;

          Et m´a remis en si grand frenesye

          Qu´en peu de temps j´ay bien changé pasture.

          Rien ne m´y vault ma grand progeniture:

          Vertu me couvre armée de patience;

          Divin voloir passe humaine science.

 

   Em francês quinhentista, claro está, que tentarei traduzir assim:

 

          Por cruel ciúme me privou a morte

          De um médico ciente da minha natureza;

          E me atirou para tão grande desnorte

          Que logo tive de mudar o pasto da minha mesa.

          De nada me serviu minha antiga nobreza:

          Abriga-me virtude armada de paciência,

          Que a divina vontade supera a humana ciência.

 

   Calha-me assim falar do clima da morte da imperatriz, muito embora haja muito mais para te contar em próxima carta.  Agora, só para enquadrar o que a seguir te digo ou transcrevo, recorro à belíssima biografia da Carlos V, da autoria de Pierre Chaunu e Michèle Escamilla (Charles V, Paris, Fayard, 2000), mais precisamente ao trecho em que se fala de Francisco Borja, duque de Gandia, amigo íntimo do imperador, por ocasião da morte de Isabel de Portugal, da qual ele era escudeiro mor, aliás casado com uma dama da nobreza portuguesa, Leonor de Castro, aia da imperatriz. Traduzo-te o texto, de que um dos autores é, precisamente, um huguenote francês, grande historiador protestante, discípulo do famoso Fernand Braudel, admirador do último imperador da latina cristandade. 

 

   Ele [Francisco Borja] partilhou as alegrias e desgostos do imperador, e entre estes o maior de todos: o luto que àquele roubou, no 1º de Maio de 1539, a que simultaneamente fora uma sua colaboradora preciosa e um ente muito querido. A morte, em trabalhos de parto, que aos trinta e seis anos levou Isabel de Portugal, tão atraente para todos quantos a rodeavam pela sua inteligência e bondade, como pela beleza (imortalizada por Ticiano), perturbou Francisco Borja até ao fundo da alma, tanto, pode dizer-se, quanto ao próprio imperador.

 

   Tanto mais ainda que lhe foi confiada, por privilégio raro, e conforme voto da defunta, a missão de acompanhar, com quatro prelados e o marquês de Vilhena, o despojo imperial até ao panteão de Granada: por isso teve de «reconhecer» - antes da sepultura, a 17 de maio - aquela que ele tinha servido com devoção durante dez anos, num cadáver já com duas semanas, em tal estado (a cristianíssima Isabel recusara ser embalsamada) que estava irreconhecível, impossível de identificar. 

 

   Terrível ilustração do Vanitas vanitatum do Eclesiastes, em que se julgou descobrir  a origem da futura renúncia do marquês de Lombay [outro título do duque de Gandia]. O seu biógrafo atribuiu-lhe esta exclamação, diante do caixão aberto e nauseabundo : «Nunca más, nunca más servir a señor que se me pueda morir». Por isso Francisco Borja se tornaria no jesuíta São Francisco de Borja...

 

   Desde há muitos anos que, quando se fala ou, comigo só, pensossinto em Isabel de Portugal, o que sempre me ocorre e recito é a Meditação do Duque de Gandia sobre a morte de Isabel de Portugal, de Sophia de Mello Breyner Andresen, que sei de cor e aqui te deixo, esperando que a minha memória não atraiçoe o poema lindíssimo:

 

          Nunca mais

          A tua face será pura limpa e viva

          Nem o teu andar como onda fugitiva

          Se poderá nos passos do tempo tecer.

          E nunca mais darei ao tempo a minha vida.

 

          Nunca mais servirei senhor que possa morrer.

          A luz da tarde mostra-me os destroços

          Do teu ser. Em breve a podridão

          Beberá os teus olhos e os teus ossos

          Tomando a tua mão na sua mão.

 

          Nunca mais amarei quem não possa viver

          Sempre,

          Porque eu amei como se fossem eternos

          A glória, a luz e o brilho do teu ser,

          Amei-te em verdade e transparência

          E nem sequer me resta a tua ausência,

          És um rosto de nojo e negação

          E eu fecho os olhos para não te ver.

 

          Nunca mais servirei senhor que possa morrer.

 

   Estes versos encerram toda a mágoa da humana condição, incluindo a da sofrida esperança num encontro com Senhor que não possa morrer.

 

Camilo Maria


Camilo Martins de Oliveira