CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA
Minha Princesa de mim:
Jovem amigo - o Lourenço Correia de Matos, historiador meticuloso - chamou-me, com justeza e justiça, a atenção para o facto de me ter referido a Francisco Borja como escudeiro mor da imperatriz Isabel de Portugal, cargo que nunca existiu, quando ele, efetivamente, era seu estribeiro mor. Na verdade, ao traduzir do castelhano (Caballerizo Mayor) confundi-me no português e escrevi escudeiro, em vez de estribeiro... Já, dias antes, em consulta médica, me queixei de, sem causa próxima aparente, eu andar a "esternuar" muito. Aconteceu misturar-me em francês - foi a língua que falei até aos meus cinco anos - , mas o clínico ficou surpreendido e, quiçá por não saber a que dicionário recorrer, nem ter tido muitos pacientes emigrantes em França, não se lembrou de "éternuer". Disse-me: "Desculpe, mas não percebo o que quer dizer"... E logo me lembrei e disse: "Espirrar, senhor doutor". Erro meu, bem pesado de consequências: continuo espirrando sem saber porquê...
Creio que foi Gregório Marañon que escreveu, no segundo capítulo das suas Meditações sobre o Tejo, com o título Suspiros em Lisboa, esta frase acerca da imperatriz de que te venho falando: Outra princesa lusitana, a pálida e divina Isabel, foi o único amor do Titã da Europa, Carlos Quinto. Ao lê-la, tal como vem citada no Charles Quint do Pierre Chaunu e da Michèle Escamilla, espirrei outra vez. Não pelo assim dito, nem pelo seu contexto, mas por logo me terem ocorrido os efeitos da seca sobre o caudal e a qualidade da água do rio Tejo, que também é português, mais agravados ainda pelo desvio de águas suas para as regas espanholas em Múrcia, por quase 300km de canal. Nem Toledo escapa, e foi aí que Marañon meditou sobre o rio Tejo, capítulo apenas do seu Elogio e Nostalgia de Toledo... Mas volto a Isabel de Portugal, segunda dos sete filhos de El-Rei Dom Manuel, o Venturoso, e da rainha sua esposa, Maria, filha dos Reis Católicos. A autêntica política matrimonial seguida por ambos os reinos ibéricos (Portugal e a recente Espanha surta da união de Aragão e Castela) ambicionava uma união peninsular. A decisão de Carlos V casar com Isabel foi, na origem, uma opção política. Cito o historiador espanhol Manuel Fernandez Alvarez: Não haja dúvida alguma de que Carlos V aceitou essas núpcias depois de aturado cálculo mental, que combinava interesses económicos e internacionais [...] O facto de Carlos V e Isabel se terem tornado mais tarde um casal simbólico e exemplar, visceralmente unido por um amor crescente, e que as ausências forçadas do Imperador idealizaram, constitui um dos mais belos capítulos da vida de Carlos V... Muitas adolescentes sonharam com destinos bebidos em histórias de principescos casamentos, cheios de felicidades e filhos. Mas a História desfia sucessos menos radiosos de enlaces politica e diplomaticamente determinados, muitas vezes - e talvez sobretudo para as mulheres - duros sacrifícios de liberdades e consciências humanas a razões dinásticas ou estratégicas. E não te esqueças, Princesa de mim, de que, em muitos casos, houve que disfarçar falhanços, insucessos, ódios até, repúdios, traições... e sei lá mais quê! Menos terão sidos os matrimónios reais autenticamente felizes, poucas as satisfações além do dever cumprido. Por isso mesmo se inventaram tantas histórias de amores lindos, mais próximas de contos de fadas do que de realidades quotidianas...
O matrimónio de Carlos V e Isabel de Portugal é uma exceção brilhante e bem lembrada, pese embora a tragédia da morte precoce da imperatriz, que ensombreceu o mundo de então, entristeceu uma corte, fez do primeiro dos criados da Senhora, o Duque de Gandia, maior companheiro e confidente do imperador, um religiosos jesuíta - logo depois de ter enviuvado também - e de Carlos V o soberano cansado que se retiraria, quinze anos mais tarde, para o mosteiro jerónimo de São Justo (Yuste). Mas cito-te vários testemunhos coevos da forte impressão de Isabel no seu tempo e sua gente. Antes, todavia, deixa-me lembrar que Isabel e Carlos eram primos direitos, já que as respetivas mães eram ambas filhas dos Reis Católicos, Isabel de Castela e Fernando de Aragão. A montante da comum árvore genealógica surge ainda outra Isabel, filha de Dom João I de Portugal, casada com Filipe o Bom, duque de Borgonha, mãe de Carlos o Temerário, bisavô do imperador: El-Rei de Boa Memória era, pois, quinto avô deste, pela casa de Borgonha e, também, tetravô dele e da imperatriz, pela linhagem luso-espanhola.
A esta chamou frei Luís de Léon, biblicamente, perfecta casada, e o cronista espanhol Francisco Lopez de Gómara mujer propria para casada. E o sevilhano Pedro Mexia, testemunha do casamento, escreveu que a Imperatriz pareceu a todos ser a mais bela princesa que alguma vez houve no mundo, o que era bem verdade, mas igualmente dotada de uma alma bela e boa... O que frei Prudêncio de Sandoval, autor, meio século depois da morte do imperador, da Genealogia de Carlos V maximo, fortissimo rey d´España, confirma assim: Si era hermosa en el cuerpo, mucho mas lo fue en el alma. Seguindo o itinerário de Michèle Escamilla (no seu Charles Quint, escrito com Pierre Chaunu), respigo um texto de Alonso de Santa Cruz, filho do alcaide de Sevilha, que assistiu ao casamento: A Imperatriz tinha a tez muito clara e o olhar cândido, falava pouco e a sua voz era grave e doce; tinha olhos grandes, boca pequena, nariz aquilino, peito miúdo, lindas mãos, garganta alta e bela; era muito reservada, talvez demais: «era de su condición mansa e retraída, más de lo que era menester». Honesta, silenciosa, cheia de gravidade, de devoção, de retraimento e de discrição, a tal ponto que lhe repugnava pedir ao Imperador fosse o que fosse, mesmo para ela própria, e mais ainda solicitar-lhe favores para terceiros; de sorte que se pode dizer que o Imperador tinha encontrado uma mulher à sua altura e convindo ao seu carácter.
Até parece que Alonso de Santa Cruz, quase uma década depois da morte da imperatriz, ditou a Ticiano o retrato de Isabel (datado de 1548) que Carlos levou consigo para Yuste, e hoje está no Prado, em Madrid. Reprodução do mesmo retrato ilustra a capa do disco do Brabant Ensemble que, dirigido por Stephen Rice tem gravada a missa Mort m´a privé de Thomas Crecquillon, de que te falava em carta anterior. Em próxima, voltarei à abdicação e retiro final de Carlos V, h deixo-te agora com um sentido elogio do beneditino Prudêncio de Sandoval à virtuosa imperatriz, feito sobre documentos coevos da grande senhora, que o monge comentou décadas depois da morte daquela: Estando a Imperatriz em sofrimentos de parto que com muita dor prolongavam o grande padecimento em que se encontrava e a iam esgotando, disse-lhe a parteira : «Sereníssima Senhora, não vos castigueis a reter os vossos gemidos, mas soltai um grande grito que vos aliviará». Ao que a Imperatriz respondeu, em português: «Não me faleis tal, minha comadre, que eu morrerei, mas não gritarei».
Cena donde reputados historiadores franceses do nosso tempo (Chaunu e Escamilla) acharam bem concluir: Sim, Carlos V encontrara, muito além de toda a esperança, uma mulher à sua altura, cujo domínio de si igualava o seu: uma verdadeira imperatriz.
A missa Mort m´a privé começa com uma canção, como que em jeito de Introitus, que traduzo para terminar esta carta:
Oeil esgaré, mon coeur de toi faict plaincte,
Car il rechoit par ton regard l´ataincte,
Qui te detient en cruelle pryson;
Et qui plus est, ne sçay quant et comment
Le tireray de ce mal et tourment.
Olho perdido, de ti se lamenta meu coração,
De queixar-se tem justa razão,
Pois pelo teu olhar recebe a ferida,
Que te retém em cruel prisão;
Tampouco sei, nem quando nem como, é soída
A hora de o tirar de tormenta tão sofrida
Quando te falar na abdicação de Carlos V, todos estes sentimentos também lhe trarão sentido.
Camilo Maria
Camilo Martins de Oliveira