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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

   Josquin des Prés compôs para Carlos V, aquando da morte de Isabel de Portugal, a canção Mille Regretz:
          

Mille regretz de vous habandoner
Et deslonger votre fache amoureuse,
J´ai si grand dueil et paine douloureuse,
Qu´on me verra bref mes jours definer
      Mil penas por vos abandonar
      E afastar-me de vosso amoroso rosto.
     Tenho tão grande luto, dor e desgosto,
     Que em breve verei meus dias definhar

 

   A mesma melodia serviu para Luiz de Narváez arranjar uma Canción del Emperador, sem vozes, mas com harpa renascentista, por ocasião da abdicação e retiro final do soberano em Yuste.

 

   E com o título Circunderunt me gemitus mortis ("Gemidos de morte me cercaram"), Cristóban de Morales, por ocasião da morte do imperador, compõe um motete:

 

          M´ont encerclé                                                     Da morte os gemidos

          les gémissements de la mort,                              me cercaram,

          les douleurs de l´enfer                                         de inferno doridos

          m´ont encerclé                                                     me rodearam

     

   Há depoimentos coevos de como se passaram os derradeiros dias do imperador Carlos V. Para te lembrar aqui, retenho apenas aqueles que claramente se referem aos seus últimos desejos Entre estes, o pedido de lhe trazerem para a beira do leito final dois quadros de Ticiano, que estavam pendurados noutra sala dos seus modestos aposentos em Yuste : A Trindade, postumamente conhecido como A Glória de Carlos V, em que, ajoelhados em adoração, aparecem Isabel de Portugal e Carlos seu marido - obra encomendada entre 1551 e 1554 - e o retrato da imperatriz, pintado também depois da morte desta. Ambos os quadros, companheiros de exílio, dizem muito dos sentimentos mais íntimos e secretos, sonhos, preocupações e afectos, do imperador.

 

   A Trindade ou A Glória de Carlos V, como lhe queiras chamar, representa-o, com sua mulher, em acção de louvor e graças diante da Santíssima Trindade, e rodeado de gentes e símbolos vários do seu império e vitórias, do seu serviço de Deus, num ambiente evocativo do que seria o juízo final da sua vida, que Isabel não viveu a tempo inteiro, mas partilhou. O retrato desta é testemunho de como, mesmo depois de morta, continuou a ser companheira sua e das obras da sua religião. Não resisto a traduzir-te aqui um trecho sentido da historiadora Michèle Escamilla inserto no Charles V que escreveu com Pierre Chaunu:

 

   O imperador, sentindo-se morrer, reclamou uma imagem da Virgem diante da qual falecera a imperatriz - Isabel de Portugal, a belíssima e caríssima esposa, morta de parto no 1º de Maio de 1539 -, e o crucifixo que ela então tivera nas mãos; esse crucifixo que ele, desde aquela hora, guardava no seu quarto - com vista à sua própria morte - tal como nove velas bentas em cera branca, provenientes do mosteiro catalão de Monserrate; pois ele votava, desde que viera a Espanha pela primeira vez, a essa  Virgem negra, velada pelos beneditinos, uma grande devoção.

 

  Terá sido nesse momento de adeus final, a que não faltou a leitura da Paixão de Cristo segundo S. Lucas, que Bartolomeu Carranza de Miranda terá proferido estas palavras: Eis que deste livro se vai lendo a Vossa Majestade. Mas quando já não conseguirdes ouvi-lo, pousai os vossos olhos aqui. E quando já não puderdes ver, procurai-o no vosso coração e na vossa memória; confiai nesse Senhor que morreu por vós, e na sua misericórdia; pois tal como Vossa Majestade mais do que uma vez defendeu a sua causa e os interesses da santa fé católica, também Ele saberá defender os vossos no céu. Não tendes de ter medo, com a ajuda de tal Senhor, não deixeis o demónio perturbar-vos pela lembrança dos vossos pecados, como ele sói fazer, neste falecimento. Rei, ponde toda a vossa esperança naquele que já pagou o preço; porque, posto que haveis feito, pela vossa parte, o que devíeis, recebendo os sacramentos da Igreja, o demónio doravante já não mais poderá fazer-vos qualquer mal.

 

   Esta exortação final custou a Carranza problemas, suspeitas de heresia, inquisições e prisões, pois houve quem o acusasse de que, afinal, teria dito «que não há pecado, a Paixão de Cristo é suficiente para a salvação», ou seja, de ter defendido o ensinamento protestante da sola fide: a fé só nos salva. Valer-lhe-á, mais tarde, São Pio V, o papa dominicano (o tal que, não quis trocar o seu fradesco hábito branco pelo esplendor das vestes pontifícias - e por isso mesmo os papas ainda hoje vestem de branco e, no caso do jesuíta Francisco, mesmo só de branco sem outros "luxos") que ordenou à Inquisição espanhola que o mandasse libertar e o transferisse para Roma... A história de frei Bartolomeu Carranza, ele também frade dominicano, amigo próximo de Carlos V e de Filipe II, prestigiado teólogo e professor, perito conciliar em Trento e que, depois de por várias vezes ter recusado ser bispo e cardeal, mesmo apesar da insistência do imperador, acabou por aceder a arcebispo de Toledo, primaz de Espanha, tem muito que se lhe diga, sobretudo em relação a tensões internas da Igreja de Espanha, e a afrontamentos gerados pela crescente omnipotência do poder da Inquisição. Carlos V era conhecido pelas suas amizades ou simpatia com "erasmistas", católicos sempre suspeitos de heresia, como, em Portugal, foi Damião de Góis que, aliás, foi defensor da universitária Lovaina, domínio do imperador, aquando do cerco que lhe moveu Francisco I de França. Vir-lhe-ia tal gosto dos seus tempos de mocidade flamenga, talvez mesmo do seu mestre Adriano de Utrecht, que chegou a papa (Adriano VI), contra o voto dos cardeais mais "conservadores" e o seu próprio desejo. Na verdade, esse cristão austero e livre não nutria qualquer apetência pelo chamado "trono pontifício", por entender que o fausto da cúria ou corte papal pouco se inspirava no evangelho. Deus fez-lhe, pouco depois, a vontade, chamando-o a Si um ano após a sua eleição. Mas tal homem sempre guardou prestígio e influência sobre o imperador, que chegou a confessar que o pouco de bom que tinha a ele lho devia... Carranza, apesar de Carlos V se ter ressentido da sua aceitação final do arcebispado de Toledo, já no tempo de Filipe II, filho em quem abdicara do trono de Espanha e da Borgonha, recebeu dele a absolvição in articulo mortis: frei Bartolomeu Carranza estava junto do imperador nessa hora.

 

   Não te esqueças, Princesa de mim, de que Erasmo de Roterdão foi nomeado conselheiro do duque Carlos de Habsburgo, futuro imperador Carlos V, e rei de Espanha, no ano em que este fazia dezasseis de idade. E ao príncipe que assim lhe fora confiado, o autor do Elogio da Loucura dedicou, no mesmo ano, a sua Instituição do Príncipe Cristão. Traduzo-te um trecho do capítulo XI dessa obra:

 

   O príncipe nunca deve encarar seja o que for com precipitação, mas em circunstância alguma ele mostrará mais firmeza e circunspeção do que no momento de decidir entrar em guerra. O poder é, em grande parte, consentimento do povo, e foi esse consentimento que primeiro esteve na origem dos Reis. Se qualquer discórdia surgir entre Príncipes, por que não recorrer primeiro a uma arbitragem? Há tantos bispos, tantos abades e eruditos, tantos sábios magistrados, cujos conselhos poderiam regular o conflito mais oportunamente do que uma multidão de carnificinas, de saques e calamidades universais. Quando o Príncipe tiver feito, por minucioso cálculo, a soma de todos esses males, acabará por pensar então: serei eu só a causa de tantas infelicidades? Tanto sangue humano derramado, tantas viúvas, tantos lares de luto, tantos anciãos privados de seus filhos, tantos pobres reduzidos à mendicidade, total ruína dos costumes, das leis e da piedade, deverá tudo isto ser imputado a mim somente? Serei eu quem deverá pagar tal dívida a Cristo? Um bom Príncipe procurará sempre adquirir a glória sem efusão de sangue nem desgraça para ninguém. Não tenho qualquer dúvida, ilustríssimo Príncipe, que te animem tais intenções: assim o requer teu nascimento, tal como a tua educação, confiada a homens tão excelentes quanto íntegros. Quanto ao resto, rezo para que Cristo tão bom e tão grande persista em fazer prosperar os teus esforços tão meritórios. Deu-te um império em que não correu sangue; oxalá assim seja sempre! Ele alegra-se por ser chamado Príncipe da Paz.

 

   Numa Europa dividida pelas lutas da Reforma e Contra Reforma, pelas ambições de Francisco I de França, retomando as rivalidades antigas com a casa de Borgonha, parte da herança genealógica e política de Carlos V, e aliando-se com o próprio império Otomano contra o imperador e os Habsburgos de Áustria, cumprir com tais propósitos não era fácil... Tampouco o Papado ajudou sempre as causas mais justas ou mais promissoras de apaziguamento e paz. Uma das maiores infelicidades de Carlos, que sempre lhe pesou na consciência e magoou o coração, foi o saque de Roma cometido por tropas suas, em desordem por atraso do soldo, em 1527. Os dois grandes revezes políticos que o afligiram antes de abdicar foram não ter conseguido afastar a ameaça turca, nem reunir numa só Igreja a cristandade latina europeia. No íntimo de todos estes desgostos de si, surge sempre, até à hora da morte, dois anos depois de abdicar, a carência ou saudade de Isabel de Portugal. A imperatriz teria sobre Carlos V uma influência que se exercia mais pelo carácter e comportamento dela, do que por coisas que fosse dizendo. Reservada, austera e devota, não sofria, todavia, como seu marido, de períodos de intensa melancolia. Referindo-se a Marcel Bataillon (Érasme et l´Espagne), Jacques Le Brun (Le Pouvoir d´Abdiquer - essai sur la déchéance volontaire, obra que nos fala das abdicações de Diocleciano, Carlis V, Ricardo II, Jaime II e Filipe V) escreve que o retiro para Yuste é o termo de uma série doutros: Assim, desde 13 de Abril de 1527, quando ainda não o marcavam a idade, nem o cansaço, nem a doença, Carlos V, em momento crítico, retirou-se ao mosteiro de Abrojo, para aí passar a Semana Santa. A data não é indiferente: está-se na expectativa de acontecimentos temíveis, a descida sobre Roma de hordas imperiais que nada parecia poder impedir; e é efetivamente em maio de 1527 que se fará o saque de Roma. Esse tempo de espera, mesmo que não se pudesse prever a extrema gravidade do acontecimento, passou-o o imperador na solidão de um mosteiro.

 

   É no quadro de uma vida de piedade, da qual temos muitos indícios, que se incluem esses retiros, mesmo no coração das suas atividades: testemunhos relatam as práticas piedosas do imperador, que tinha o hábito de compor, ele mesmo, orações e de se retirar «no fervor da oração»...   ... como se, na teia das intensas atividades exteriores, se abrissem instantes de solidão e oração; então se revelaria, no próprio coração do exercício do poder, uma retirada do poder ou, pelo menos, um aquém ou um além do poder, causa de espanto para os contemporâneos e para a posteridade...

 

   Tenho para comigo, Princesa de mim, que a religiosidade de Carlos V o rasgava, o dividia entre o "faz tudo" de Deus, servidor da fé católica e da monarquia universal, e o príncipe que aprendera como será vazio de sentido e força o poder exercido à margem das aspirações dos povos, e quão difícil é conseguir que estas se conjuguem. Na Trindade de Ticiano, pinta-se a glória maior do imperador: com sua mulher, agradece e bendiz, entrega a Deus a sua obra e o humano cansaço dela... Foi famoso pela bravura e intrepidez nos campos de batalha, e venceu em muitos. Também pela gula, por apetites de manjares vários e muitos, que regava, à flamenga, de boa cerveja fria. E, a par dos arrebatamentos ascéticos, caía com gosto em tentações eróticas, com proles patentes antes do casamento e depois da morte de Isabel. Mas quem somos nós, Princesa de mim, para negar que, graças a Deus, o ser humano é sempre circunstância e contradição...

 

   O que não impede alguém de ter fidelidades íntimas, por temperamento inato ou por educação. Aquele que muitos dizem ter sido o primeiro e o último imperador da Europa, era visceralmente um homem ecuménico. Confrontado com a hostilidade de Francisco I de França, que vencera e aprisionara em Pavia, dar-lhe todavia, mais tarde, em casamento, sua irmã Leonor, viúva de Dom Manuel I de Portugal, seu sogro. Em sinal de paz desejada e seguro de aliança. Perante a instabilidade crescente de uma cristandade europeia, que se ia dividindo entre católicos e protestantes - e os virava uns contra os outros - definiu em 1521, na Dieta de Worms, uma política, assim resumida por Joseph Pérez no seu Charles V, Empereur des deux monde: desaprova Lutero, ao qual censura de ofender a tradição secular da Igreja, mas tem repugnância em reduzir o cisma pela força das armas: preferiria que um debate levasse as duas partes a chegarem a acordo. Por outras palavras, é de um concílio universal que ele espera a solução. Mas a reunião de tal concílio pressupõe três condições prévias: que o papa o convoque; que os luteranos aceitem participar; que a Europa cristã esteja em paz. É por isso que o concílio, quando finalmente se reúne [em Trento], apenas poderá tomar nota da divisão religiosa da Europa e de que a reforma que iniciará só irá abranger os territórios que tiverem permanecido fiéis à Igreja de Roma.

 

   Se Adriano VI não tivesse morrido em 1523, um ano depois de eleito papa, talvez tudo fosse diferente. Mas Clemente VII, que lhe sucedeu, era um Medici que, como diz Pérez, "estava demasiado preocupado com manter, em Itália, um equilíbrio subtil entre as potências rivais - Francisco I e Carlos V - para que pudesse dar satisfação ao imperador, convocando o concílio que daria a Carlos V superior autoridade ; além disso, o papa não estava preparado para reconhecer que Lutero tinha alguma razão de querer reformar a Igreja"... Só após muita inútil guerra, incluindo o saque de Roma, em 1527, o mesmo papa, em 22 de Fevereiro de 1530, entregará a Carlos V a coroa de ferro dos reis lombardos e, dois dias depois, no trigésimo aniversário do marido de Isabel de Portugal - e quinto da vitória deste sobre Francisco I, em Pavia  -  a coroa de oiro do Sacro Império. Doravante,Carlos V passa a ser verdadeiramente imperador : até aí fora apenas rei dos Romanos e imperador eleito. Pela última vez na História, um papa coroou um imperador do Sacro Império.

 

   Nem tais vitórias, nem tanta honraria, pensossinto, Princesa de mim, venceram a melancolia da incompletude em Carlos de Habsburgo. Tal como prazer algum ou aparente conforto lhe apagou o possessivo desgosto da viuvez, depois da morte de Isabel. A desilusão alimentou o seu cansaço político. O adeus de Isabel terá sido o seu único pesar de amor. Eis o que, com infeliz inabilidade, eu quis dizer, há três anos atrás num dos meus Sonetos de Amor Mordido, como última oração de Carlos V, abdicado, em Yuste:

 

               Erguendo as mãos, Te levo este embaraço:

               na coroa, império e amor não tive sorte,

               e já nem sei qual foi a pior morte,

               se a de Isabel, ou só o meu cansaço...

 

               Não desci, nem deixei o trono só:

               vim apagar mágoas fundas e dores,

               sonhos secretos e os seus estertores

               no tempo, que de nós nunca tem dó...

 

               Eterno, acreditei, pudesse ser

               de todos nós, cristãos, o nosso reino,

               e sobre a divisão prevalecer

 

               a redentora cruz, esse sinal,

               tão forte como outro que em mim tenho:

               Morta, vive Isabel de Portugal!

 

Camilo Maria

  

Camilo Martins de Oliveira