Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

   Corri a abrir um livro que recebi por correio recente, ao deparar hoje com uma entrevista de David Grossman, escritor israelita que desconhecia, ao jornal Público. O tal livro, que eu já folheara no princípio da semana, é uma tradução, com longa introdução e abundantes notas, da Kabbala denudata de autoria ainda hoje discutida, mas atribuída a Christian Knorr von Rosenroth, datada de 1684, na sua edição em Frankfuhrt. O título original completo dessa obra setecentista, que traduzo para português, reza assim: Esboço da Kabala Cristã, isto é, Sincatabase Hebraica, ou Breve Aplicação da Doutrina Cabalística dos Hebreus aos Dogmas da Nova Aliança, para Formar uma Hipótese Útil à Conversão dos Judeus... Trata-se de um diálogo ou debate, em doze capítulos, entre um cabalista judeu e um filósofo cristão, de que voltarei a falar-te em próxima carta, bem lembrado de que uma certa evolução semântica fez a palavra cabala dizer-nos hoje algo mais próximo de sinistra conspiração do que de mística, seu significado original. Mas neste dia, não fui ao livro por pensar na cabala, mas para encontrar uma citação que o responsável pela edição francesa a que me refiro (Les Belles Lettres, Paris, 2018), o frade dominicano Jérôme Rousse-Lacordaire, usa para epígrafe da sua introdução intitulada À l´Ombre de la Kabbale. Trata-se de um passo de Max Jacob, tirado de Les Oeuvres burlesques et mystiques de Frère Matorel mort au couvent. Traduzo-o para ti, mas lembrado do meu amigo Marcello Mathias, que se sorri apelidando-me de místico excessivo... Aqui vai:

 

   Contudo, ó demasiado místico filósofo, eis-te inquieto, não estarás a insinuar que os ignorantes tomam os símbolos por realidades, e que os outros tomam as realidades por símbolos?

 

   E que tem isto tudo a ver com as cinco páginas que o suplemento Ypsilon do Público dedica a David Grossman, incluindo uma elogiosa resenha do seu último livro publicado em português (Um Cavalo Entra num Bar, tradução de Lúcia Liba Mucznik, D. Quixote)? Obra, aliás, também aconselhada por Francisco Louçã, nesta mesma 6ª feira, na sua habitual aparição no jornal da noite da SIC-Notícias, e que, pelo que me foi dado perceber, trata de modo estimulante, ainda que ficcional, o humor judeu. Não sei se tal humor se reproduz por clones em Israel e todas as várias reuniões da diáspora, mas o que conheço - dos filmes do Woody Allen e de muitos convívios pessoais com judeus em New York e não só -  leva-me a concordar com a apreciação feita por Isabel Lucas ao livro de Daniel Grossman: Rir ou não rir não é uma opção, há verdade na gargalhada, e Dovaleh [o protagonista, contador de piadas] sabe. Ele é um humorista porque conheceu cedo o riso dos outros, os que não riam com ele mas dele. Na infância e na adolescência ele era a piada má, e agora, adulto, quase velho, quer olhar-se de frente, pela primeira vez.

 

   E eu dou comigo, Princesa, a parafrasear Max Jacob: os sobreviventes tomam as piadas por realidades, ou tomarão estas por piadas? Isto é: não será o humor incansável um remédio cabalístico para aguentarmos o trágico? Mas pode ele ser universal, como a música que faz o belo milagre de nos harmonizar, de nos pôr -  e somos tão diferentes! - a comungar as mesmas emoções? No período do último Natal, meditei muito sobre o desentendimento, não tanto enquanto diferendos ou discórdias, mas muito mais enquanto ausência de comunhão humana. Ao longo da vida conheci, graças a Deus, muitas amizades, amores e famílias constituídas por pessoas que inicialmente nem falavam a mesma língua, vinham de povos e culturas, não só diferentes, mas ignorantes uns dos outros. Eram felizes, viviam em profunda comunhão humana, tinham sabido abrir a porta para o caminho da descoberta mútua contínua, que é a única via do amor. Mas, infelizmente, também todos os dias deparo com relações quebradas e corações rasgados entre gente de igual nascimento e criação, que se combate por ganância, por egoísmo ou por soberba, cuja forma mais vulgar, generalizada e insidiosa, é a das chamadas verdades e dos pretensos direitos inatos. Será talvez aí que se confundem, em nebulosas dos espíritos, a cabala mística e a conspirativa, e as nossas boas intenções são nubladas por crenças, preconceitos e ingenuidades. Lê, Princesa de mim, com atenção, os seguintes trechos das declarações de David Grossman a Isabel Lucas (transcrevo do jornal, não traduzo):

 

   Sou muitas vezes questionado se Dovaleh é uma metáfora de Israel. Não acho que uma pessoa possa ser a metáfora de um país, mas há uma ou duas coisas que são similares na vida de Dovaleh e a realidade aqui: primeiro, a contradição entre uma interioridade muito suave e um exterior muito duro; segundo, o sentimento trágico de sentir que se vive em paralelo com a vida que se poderia ter ou devíamos ter. Em 1967, quando Israel venceu a Guerra dos Seis Dias e ocupou todos estes territórios, a grande vitória militar revelou-se uma tragédia nacional: fez de nós ocupantes, criou de modo profundo em nós uma bebedeira de poder que nos trouxe à situação atual, em que há muito pouca esperança para o futuro, com israelitas e palestinianos numa espécie de bloqueio ou beco sem saída. Esta vertigem sem esperança nunca fica de facto vazia, porque há sempre elementos com uma agenda clara, fundamentalistas fanáticos, uma agenda fascista, racista, que está a pular, a ditar o nosso futuro e a sequestrar o nosso futuro e o dos nossos filhos. A situação parece bastante inoperante, sem saída.

 

   Já quando perguntado sobre «o que pensa da decisão de Trump reconhecer Jerusalém como capital política de Israel e mudar para aí a embaixada americana», começa por responder dizendo: Antes de mais, Jerusalém é a capital de Israel. Isto é histórico. Quanto a histórico, resposta mais correta seria dizer que Jerusalém foi a Cidade Santa, a do Templo da Aliança, a das Duas Pazes (terrenal e celestial), mais do que capital de qualquer reino judeu: foi conquistada pelo rei David, da tribo de Judá, em 997 a.C. (em tempos, aliás, para muitos historiadores, ainda não pertinentemente determinados, mas conforme consta dos relatos bíblicos). Depois te falarei, resumidamente, dessa ideia de estado ou reino antigo.

 

  Mais adiante, diz Grossman que no futuro, se avançarmos para negociações de paz entre nós e a Palestina, devemos trazer a questão de Jerusalém como parte de um equilíbrio complicado e devemos decidir que Jerusalém seja dividida a leste, o lado da Palestina, e a ocidente, o lado de Israel. E fazemos o acordo de como nos movimentarmos entre os dois lados, podendo ir rezar aos lugares sagrados das duas religiões. Isto terá de ser feito de forma muito lenta e com uma solução muito detalhada, e não por uma declaração «fast food» do senhor Trump. Este arrazoado, levando em conta apenas judeus e muçulmanos, escamoteando a forte presença de cristãos, muitos destes sendo palestinos ali instalados há séculos, tal como os judeus propriamente do sítio (não os adventícios ocupantes), reflete a influência da propaganda sionista, que insiste em apresentar um Israel "forte, fiel, façanhudo", todo judeu, hoje mais do que nunca guardião da fronteira avançada contra o pernicioso islão. Ignora a verdade histórica e, sobretudo, lamentavelmente, os exemplos passados de uma Cidade do Mundo que, ainda no fim do domínio otomano, conseguiu ser gerida em paz, na convivência e acordo de todas as suas comunidades étnicas e religiosas (donde os quatro bairros, ainda hoje existentes: judeu, cristão, muçulmano e arménio). Curiosamente, leva-me a recordar um vídeo, desses que circulam pela rede (ou teia?) chamada "internet", e que querida amiga me reencaminhou: aí, com ar científico e professoral, um PR (leia-se pi ar), além da treta de Jerusalém ser capital do estado de Israel há mais de 3000 anos, diz-nos que os muçulmanos rezam virados para Meca, e só os judeus para Jerusalém...

 

   Noutro trecho da entrevista, Grossman confirma que escreveu o livro em hebraico (aliás, o prémio Man Booker International 2017 foi-lhe atribuído e, simultaneamente, à sua tradutora inglesa), e diz: Sim, o hebraico é uma das línguas mais antigas. Parte da Bíblia é escrita em hebraico. O que mais é preciso para provar quão antiga e importante é esta língua para as religiões e cultura ocidentais e islâmica? O modo de narrar que está na Bíblia afetou tanto outras culturas e religiões! Para nós, em Israel, o hebraico é um milagre. Foi uma língua em dormência, não uma língua falada, durante quase dois mil anos. Renasceu no início do século XX quando quase ninguém a falava, era apenas a língua das orações, uma língua sagrada. E por causa da insistência e devoção de uma pessoa, Eliezer Ben-Yehuda (1858-1922). Ele reinventou a língua hebraica, baseando-se na Bíblia, no Talmude ou no Mishná. Ele beijou a bela adormecida e viu-a acordar para a vida, e hoje quase toda a gente em Israel fala hebraico, as pessoas fazem negócios em hebraico, apaixonam-se em hebraico, o Exército fala hebraico, as pessoas mais jovens fazem tudo em hebraico. E dá um prazer especial escrever em hebraico, porque se pode escrever numa língua cheia de identidade, de herança e jogar com as diferentes camadas dessa língua. - Continuam a inventar-se palavras? - Sempre! Por causa da anormalidade de uma língua muito antiga que quase se perdeu e que teve de ser reinventada, tiveram de se inventar palavras que faltavam. Por exemplo, Eliezer Ben-Yehuda teve de arranjar um nome para a palavra "tomate". Não havia tomate no tempo da Bíblia, nem gelados, e ele inventou-a. O nome que deu ao tomate foi o que em inglês corresponde a «flirtatious lady», porque ela cora nessa situação [«agvania» em transliteração]. É uma mulher ruborizada [risos]. Quando estou a escrever e chego a um momento em que me falta uma palavra em hebraico e ela não existe, então muitas vezes essa palavra surge numa forma que me parece clara, e imediatamente toda a gente sabe o seu significado, sabe o que quero dizer, como se ela fosse encaixar num lugar que lhe estava reservado.

 

   O linguista que não sou, um essoutro qualquer estudioso rigoroso, poderia dizer que, afinal, a exemplo dos mitos histórico-políticos que hoje se vão (re) inventando, o hebraico que ali se constrói é uma pretensão de língua sem historial de vox populi. Indubitavelmente uma tentativa de unidade linguística de populações provenientes de muitos lados da diáspora, transportadoras de culturas e linguagens diferentes, não sei se também escamoteadora das línguas antigas que muitas dessas comunidades falavam, como o ídiche ou o ladino. Tal como, no século XV, os Reis Católicos uniram reinos de Espanha, pela imposição da uniformidade religiosa. Não sendo cientista nem sábio, limito-me a recorrer a outras fontes de apreciação. Sem, todavia, resistir a remeter-nos primeiro, Princesa de mim, para a poética informação de que «agvania» afinal traduz «flirtatious lady», posto que o fruto tomate evoca o ruborizado rosto de uma dama em amorosos calores... Tanto quanto lembrar-me posso, tomate deriva do inca tomatl, assim se registou o nome desse fruto em castelhano, cerca de 1532, quando nos trouxeram a pertinente solanácea do Peru. Aliás, peru também chamamos nós a essa pobre ave, natalícia iguaria a que, pelo thanks giving, os americanos do norte chamam turkey (da Turquia, herança britânica), e os franceses insistem em tratar por dinde (da Índia, já que o maneirismo gaulês dá sempre prioridade às senhoras pelo que ao peru macho chamará dindon). Afinal, pergunto eu, que nem sobre animais sou sábio: donde veio o bicho? do Perú, da Turquia, da Índia? Mas, correndo o sério risco de ruborizar-te, Princesa, volto ao tomate, que os italianos tratam, bíblica e italicamente lembrados do pecado original, por pomo de ouro (pomodoro). Ou, como regista, sempre competentemente, António Houaiss, no seu Dicionário da Língua Portuguesa : Tomate já figura no dicionário de Bluteau (1721), que comenta: «Não aprova Ruellio o nome de "Poma Amoris", que alguns dão aos Tomates por serem fermosos à vista, porque todos os mais frutos, que tem esta excellencia, justamente pretenderiam este mesmo nome; & se nós lhes chamamos Tomates, dando a entender que a sua fermosura convida a gente, que os vê, a Tomallos, toda a mais fruta vistosa, &  agradável aos olhos se poderá com razão chamar Tomate. E noutra entrada regista que "tomates, substantivo masculino no plural, significa também (desde 1899?), testículos e, por extensão, o conjunto das qualidades viris: valentia, audácia, etc."...

 

   Com este pouco ou nada de riso pícaro, deixo-te, Princesa de mim, até próxima carta, a voltar ao assunto subjacente. Afinal, estas cartas mais não são do que uma conversa entre nós.

 

Camilo Maria

Camilo Martins de Oliveira