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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

   Para nos ajudar na reflexão sobre esta problemática da legitimação de Jerusalém como capital do presente estado de Israel, isto é, com a dimensão territorial e histórica que lhe pretendem atribuir, tantas vezes ao arrepio dos direitos internacional e humano, traduzo-te (da edição francesa do Courrier International, da primeira semana deste fevereiro) passos dum trecho de artigo originalmente publicado (a 23 de janeiro) no Maariv de Tel Aviv e assinado pelo israelita Ben Caspit:

 

   Ao pronunciar o seu discurso diante da Knesset [a 22 de janeiro], Mike Pence inundou-nos de louvores e de beijos, de apaixonadas declarações de amor. Nada fingido, bastava ver o seu olhar determinado. O discurso era quase perfeito. O seu amor por esta terra está cheio de admiração por Israel, o povo judeu, a santidade do país de Israel, e mais não digo. Mesmo Netanyahu, o rei do género, não poderia ter feito melhor, e eis sem dúvida o maior elogio que podemos fazer a Mike Pence, sem ironia.

 

   Pence parece, à primeira vista, um homem político americano clássico. Cabelos brancos bem penteados, fato de bom corte, palavra fluida e carisma tranquilo. Pence pronunciou um discurso impressionante, cheio de referências e inovações. Marcou para o fim de 2019 a data limite da transferência da embaixada americana para Jerusalém. Confirmou que se o acordo sobre o nuclear iraniano não fosse corrigido pelas partes envolvidas, os Estados Unidos dele se retirariam unilateralmente. Repetiu que Israel é o aliado mais essencial da América.

 

   Mike Pence é a incarnação dos sonhos da direita israelita em geral e de Netanyahu em particular. Contrariamente ao atual presidente americano, caprichoso e imprevisível, Pence é um homem calmo e piedoso. Ao pronunciar um discurso em que pesou bem cada palavra, deu-nos essa massagem tailandesa com fundo de música apaziguadora.

 

   O amor de Pence pelo povo de Israel e os judeus mergulha as raízes nas suas convicções evangélicas. Segundo a fé evangélica, quando vierem a Redenção e o Messias (entenda-se: Cristo) todos os judeus se reunirão em Israel e se converterão imediatamente ao cristianismo. Mesmo que pensemos que esse dia nunca chegará, é bom sabê-lo, já que, nos Estados Unidos, há 60 milhões de sionistas em potência, evangélicos que se supõe estarem enamorados de nós até ao fim dos tempos...

 

   ... Mas não são as apaixonadas declarações de Mike Pence em Jerusalém que nos ajudarão a resolver o nosso conflito com os Palestinos. Quando formos grandes, caber-nos-á decidir o que queremos ser, definir, de uma vez por todas, as fronteiras do nosso Estado. É pena não ser possível substituir todos esses Árabes por cristãos evangélicos que acreditam na vinda de um Redentor a Sião. Ainda que talvez fosse preferível que esse Messias nunca viesse, porque teríamos então de nos converter ao cristianismo!

 

   Não conheço o senhor Ben Caspit, não sei que juízo fazer das sua palavras. Mas sei que, para o movimento sionista, com motivação religiosa e escatológica, o regresso a Sião (que significa a terra de Israel (Eretz Israel) e Jerusalém, o regresso do «Povo Eleito» a esse lugar histórico-teológico é condição sine qua non da vinda do Messias, pelo que a reivindicação do poder absoluto do estado de Israel sobre a «Terra Santa» é assim fundamentada politicamente... Ou sê-lo-á teocraticamente, sem qualquer fundamento no direito internacional, que é, este sim, o direito positivo das gentes? Pessoalmente -  e não sendo eu próprio judeu, mas tendo muitos amigos que, com ou sem religião, se reclamam do judaísmo -  gostaria de poder dar a uma declaração de Theodor Hertzl, fundador do sionismo, uma interpretação rigorosamente política e respeitadora do Direito, tal como o entendemos na definição de justiça dada por Ulpiano, jurista romano, que tantas vezes, Princesa, já te citei: Justitia est jus suum cuique tribuendi. Quero crer que, ao escrever no seu O Estado Judaico as frases seguintes, Hertzl quis mesmo dizer o que lá está escrito: Eu considero a questão judaica não como uma questão religiosa ou social, mas como uma questão bem nacional. Para resolvê-la é necessário, antes de mais, colocá-la em termos políticos à escala mundial. Poderá então ser regulada no quadro do conselho dos povos civilizados. Nós somos um povo. Com toda a certeza: um povo como os outros. sem mais nem menos direitos do que os que a justiça a cada um deve atribuir ou reconhecer. Li, creio que no jornal Le Monde do passado dia 2 de fevereiro, passos dum relatório dos representantes diplomáticos dos países da União Europeia em Israel, considerando que "a administração Trump quebrou o consenso internacional acerca do conflito israelo-palestino, baseado no direito e nas resoluções das Nações Unidas". Tal relatório aponta os malefícios da já antiga política israelita de marginalização económica, política e social dos palestinos em Jerusalém...   ...e como, em razão do isolamento físico e da política israelita restritiva de salvo condutos, a cidade já deixou de ser o centro económico, urbano e comercial palestino que costumava ser... Para não falarmos da continuação da ocupação, por decisão unilateral, ilegal e violadora de direitos territoriais e humanos, de terras palestinas por "colonatos" israelitas (não se lembram dos «espaços vitais» que Hitler reclamava?). Recordo que, pelo armistício de 1949, entre a Jordânia e Israel, Jerusalém permanece dividida entre dois países; e, pelo acordo de paz de 1994, entre eles celebrado, mutuamente se reconhecem a OLP e o Estado de Israel. Infelizmente, já nas conversações de paz, entre palestinos e israelitas, retomadas na Turquia, em 2008, a questão de Jerusalém não é abordada. Anos antes, o poeta judeu Yehuda Amihai (1924-2000) dissera que Jerusalém é uma operação cirúrgica que ficou aberta. Mas, no século XV (em 1434?), um viajante judeu, Elias de Ferrara, vindo da Itália à Jerusalém já sob domínio otomano, escreveu: Os Judeus de Jerusalém fazem, taco a taco, tratados com os Ismaelitas (isto é, os Árabes), e eles não desconfiam uns dos outros...

 

   Resumindo o meu pensarsentir a questão palestina, designadamente a do estatuto de Jerusalém, tal como atual e dramaticamente se coloca:

 

   Aos estado-unidenses diria que se lembrem dos seus "Pais Fundadores", dos constitucionalistas que criaram o Distrito de Colúmbia para aí fixarem - e nunca em qualquer um dos estados federados - a capital federal dos EUA: Washington, D.C. Não vos parece recomendável que uma cidade-mundo, como Jerusalém é, que até já deu provas de poder ser a cidade santa de vários povos e credos, e símbolo de um encontro e convívio universal, seja uma entidade com administração própria, livre, independente de outros poderes políticos - inclusive e sobretudo dos que geograficamente a rodeiam e que, por consenso, a devem reconhecer como tal e proteger, sem que qualquer dos estados envolvidos faça dela sua capital própria?

 

   Aos líderes de um estado de Israel, em que mais de metade da população judia se declara laica, e menos de 35% ortodoxa ou apenas praticante, pediria que refletissem no mal que outros terríveis nacionalismos populistas fizeram a milhões de judeus da diáspora, para finalmente também eles próprios, perseguidores, acabarem mal; e que pensem melhor no símbolo universal que Jerusalém, desde sempre mais cidade do Templo do que capital política, hoje é, para judeus e muitos que não o são, promessa de encontro, terrestre e celeste, de todos os povos da terra. E fazendo este apelo, nem preciso seria recorrer à insinuação de que a sorte das armas e dos povos não fica sempre virada para o mesmo lado... Basta-me evocar a memória do próprio judaísmo e o nome hebraico da cidade de que já te lembrei outras etimologias. Até acabam todas por concordar: a Shelem ou Salém referida no livro do Génese (cujo rei é o sacerdote Melquisedeque, que a Abraão oferece pão e vinho) já quererá dizer Shalom, Paz; Yerusalahim, em hebraico, cidade integral, Cidade da Paz. Lugar santo, acolhia todos os peregrinos, oferecia-lhes alojamento gratuito. Não foi dividida pelas doze tribos, nem entregue a reinos, porque era símbolo da paz entre todos. Na profecia de Isaías (2, 2-5), Jerusalém, centro da fé de Jacob/Israel, tornar-se-á na vocação religiosa de todos os povos: Pelo andar dos tempos acontecerá que a montanha da Casa de Yahvé se estabelecerá acima das montanhas e se erguerá acima das colinas. Então, todas as nações convergirão para ela, então virão inúmeros povos que dirão: «Vinde! Subamos à montanha de Yahvé, à casa do Deus de Jacob, assim nos ensine ele as suas vias e sigamos os seus caminhos». Pois que de Sião nos chega a lei, e de Jerusalém a palavra de Yahvé. Julgará entre as nações e será árbitro de numerosos povos, que quebrarão as espadas para fazer arados e as lanças para fazer foices. Já as nações não levantarão espadas contra as outras, e jamais se aprenderá a fazer guerra. Vamos, Casa de Jacob, marchemos à luz de Yahvé!  Infelizmente, correntes do judaísmo insistiram em vincar uma linha de superioridade do seu povo e da sua religião, numa perspetiva nacionalista, tantas vezes soez, que talvez tenha marcado para mal o destino de uma nação que, enquanto tal, e fiel à Aliança, poderia sem mácula ser portadora de uma mensagem universal de paz. 

 

   Não me parece, pois, justificar-se qualquer receio de "ofensa" religiosa ou tibieza argumentativa no exercício do dever internacional de impor ao atual estado de Israel o respeito devido às disposições, acordos e resoluções que têm vindo a ser tomadas, consentidos e decididas no concerto das nações, relativamente à arrogância e à atuação de posição de força (sustentada pelo apoio dos EUA) de que aquele Estado vem impunemente usando e abusando.

 

   E, ao afirmá-lo, não estou a falar de política, estou simplesmente a lembrar-me do dever fraterno de cultivar o espírito.

 

Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira