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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

    É claro, também, no palco político-diplomático do mundo, que os discursos se assemelham, cada potência se declarando alvo de perseguição pela outra, e vítima de conspirações sucessivas. Estamos em pleno teatro trágico-cómico, de que o episódio Skripal (ainda por cima o homem, ao que consta, era espião duplo...) é lamentável cartaz e nem sequer serviu cabalmente para escamotear os vários e graves problemas, que o Reino Unido tem com o Brexit, quer internamente (Escócia e Irlanda do Norte, entre outros; ou o da crescente percentagem de votantes "sim" que hoje se sente aldrabada no referendo), quer externamente (se os parceiros europeus do RU se sentem desagradados, o Brexit encontra dois aliados (promotores?) estranhos: EUA e Rússia). Além disso, quiçá tivesse sido mais prudente, e certamente mais inteligente, apontar-se sem formar culpas o gravíssimo incidente de tentativa de homicídio com arma internacionalmente proibida e reclamar-se a condenação internacional do mesmo, solicitando-se a organização de esforços convergentes de investigação de responsabilidades, que envolvessem todos os possíveis suspeitos. Mas preferiu-se a precipitação e o arremesso de culpas não substancialmente provadas (ainda por cima, ao que consta, o tal gás também já poderá ter sido fabricado no RU...). Bem estiveram o Presidente da República e o Governo de Portugal, tal com muitos pensadores independentes, como Jaime Nogueira Pinto, que se pronunciaram pela independência de juízo portuguesa. Não sou, nem quero ser, comentador político. Ao conversar epistolarmente contigo, Princesa de mim, falando destes temas, procuro apenas olhá-los caleidoscopicamente. Assim, sobre o caso Skripal em geral, e a posição até agora assumida pela diplomacia portuguesa. E não esquecendo que Theresa May talvez se tenha lembrado de Margaret Thatcher que, nos finais dos anos 70, para distrair a opinião pública da dureza da sua política relativamente aos mineiros grevistas, ressuscitou o caso Anthony Blunt, que chegara a ser conservador das coleções de arte da Coroa britânica e professor consagrado e condecorado, mas fora comunista na juventude, e não só, mesmo chegando a ser espião por conta da URSS, em tempo de guerra.... [Ele pertencia, tal como Kim Philby e Guy Burgess, ao célebre Grupo dos Cinco de Cambridge]. Tal como tenho memória fresca de notícias sobre a brutalidade com que Putin pode tratar oponentes e adversários...

 

   A chamada "Guerra Fria" sinalizava um clima de tensão entre duas grandes potências e seus respetivos aliados, cada grupo constituindo um bloco ideológico, político, económico e militar, em que, felizmente, a diplomacia ia tendo umas oportunidades de intervenção, sobretudo devido à memória amarga que, de um lado como do outro, os povos guardavam da barbárie da 2ª Grande Guerra, bem como à consciência generalizada de que qualquer conflito à escala global poderia implicar o recurso a armas nucleares, cujo poder de destruição, até essa altura, "apenas" fora testado em Nagazaki e Hiroshima, pelos americanos. Foi-se, pois, fazendo friamente a guerra, como quem joga num tabuleiro de damas ou xadrez, colocando agentes e conflitos em palcos alheios. E fazendo batota, claro, cada jogador dispondo redes de espionagem e procedendo a "execuções" cirúrgicas, independentemente de se ser ditadura ou democracia a dar ordens: entre muitos outros, incluindo franceses e israelitas, e não só, foram-se celebrizando KGB, CIA ou M15 e 16... A autêntica competição, todavia, situava-se sobretudo na corrida ao armamento e no desenvolvimento das tecnologias inerentes ao complexo militar e industrial, designadamente no domínio espacial. Em tudo isto, o que contava era o campeonato, as ideologias eram para esquecer. O problema maior, para cada concorrente, era o financiamento da aventura. Neste capítulo, o capitalismo liberal mostrou-se mais capaz de resultados do que o capitalismo estatal. E, para o que ao tema nos traz, Princesa de mim, não foi despicienda a participação de um maior número de democracias na globalização e incremento das trocas comerciais. A vitória "ocidental" deveu-se ao desafogo económico conseguido, que não só beneficiou os países participantes, como fomentou um mimetismo político-económico na zona comunista, assim levada a promover glasnost e perestroika...

 

   "Roma e Pavia não se fizeram num dia", tampouco se desfazem, de hoje para amanhã, mazelas e cicatrizes deixadas pela "guerra fria"... Mesmo no subconsciente popular vão ficando referências como "Europa de Leste", mais com carga ideológica e política, e até de sinónimo de barbárie, do que simplesmente apontando um posicionamento geográfico... Por essa e outras se vai mantendo um clima mental de guerra fria, apesar do fim do bloco soviético e do crescimento de relações a vários níveis e em muitos campos, desde a agricultura ao comércio, das infraestruturas aos combustíveis energéticos, artes e futebol. Curiosamente, aliás, os maiores investimentos financeiros em clubes de chuta a bola muito populares em países como o Reino Unido, a França, etc., têm acentuada origem em magnates árabes, chineses e...russos! E olhemos para as bandeiras nacionais dos países de leste, alguns dos quais hoje membros da UE, que ostentam símbolos heráldicos de passadas monarquias e impérios (reparaste, Princesa, nas cruzes e águias bicéfalas exibidas sobre edifícios públicos de Moscovo e S. Petersburgo?), e prestemos atenção às razões que levam alguns deles a eleger governos nacionalistas que, no "ocidente", seriam de direita-direita. Sofreram quase meio século de dependência e humilhação, não tiveram, depois, como a RDA, uma outra metade abastada no lado de lá (de cá, para nós) que os ajudasse a mais fácil integração num regime socioeconómico diferente. Ainda por cima, tiveram de passar por crises de confiança e identidade... As sociedades não se transformam por toques mágicos nem eletrónicos ou informáticos. Os povos, além de resistentes, são resilientes (qualificativo que, como bem sabes, Princesa de mim, é hoje empregue pelos nossos políticos com significação algo confusa...). O fim da "guerra fria", Princesa, permitiu e promoveu uma corrida aos  armamentos mais alargada, a emergência de mais potências regionais, algumas com tentações evidentes de interferência a nível global... A guerra mundial de hoje é, como foi na "guerra fria", uma semear de conflitos parciais, com a diferença de que as grandes potências - que sofreram revezes, como os EUA no Vietnam e a URSS no Afeganistão  -  têm agora de procurar fomentar alianças ou blocos regionais, retirando os seus próprios peões da liça : pensa, Princesa, no recente entendimento russo-turco-iraniano sobre a Síria, em simultaneidade com o anúncio de retirada de Trump.

 

   Mas também guardo, para carta por seguir, uma reflexão sobre a Europa e o que nela já foi, é hoje, e poderá ser ocidente e oriente, sem esquecer essa ideia inicialmente alemã da Mitteleuropa (título do livro do geógrafo Joseph Partsch, publicado em 1904), que até serviu para desenhar um espaço político a separar a Europa da Rússia, nação europeia, cujo estado ocupa o maior território nacional do mundo, quase todo na Ásia, de que a Europa apenas é uma península dela separada pelos Urais... 

 

Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

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