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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA


Minha Princesa de mim:

 

   Em 2015, Scotty Allen, californiano de 38 anos, promissora cabeça de Silicon Valley, visitou Shenzen, cidade chinesa de entre dez a vinte milhões de habitantes que, nos anos 70, não passava de uma aldeia de pescadores. O que aquele americano, vanguardista de tecnologias de ponta, ali descobriu deixou-o estupefacto: Ora esta! Estamos lixados! - exclamou perante a imensidão de arranha-céus de vanguarda acenando com as últimas descobertas e progressos da informática e da electrónica. E acabou por concluir que a China está mesmo, mesmo, a ultrapassar o Ocidente no domínio das novas tecnologias: Chegar a Shenzen é como viajar no futuro. Há ali uma energia incrível, e toda a gente parece beneficiar da maré a subir. As pessoas de lá são espertas, inovadoras e criativas... Saberás, Princesa, que Shenzen também é hoje um dos dois maiores portos do mundo, oferecendo à região de Cantão - onde se concentra 12% do PIB chinês e a maioria da indústria exportadora do Império do Meio - uma saída para o seu comércio externo. O delta do rio das Pérolas, na região, tinha, nos finais do século XVIII, um nível de desenvolvimento superior à da outra «economia-mundo» (no conceito de Braudel) daquele tempo: a Holanda em redor de Amsterdão. E em Cantão estiveram, no século XVI, muitos portugueses negociando, alguns ficando prisioneiros. Inclusive a célebre embaixada de Tomé Pires, enviado por Dom Manuel I ao imperador da China...

 

   Sob o título de Autocracy´s Global Ascendace e assinatura de Yascha Mounk e Roberto Stefan Foa, a revista Foreign Affairs chama-nos a atenção para o facto de, no auge da 2ªGuerra Mundial, Henry Luce, fundador da revista TIME, ter arguido que os EUA tinham amassado tanta riqueza e poderio, que o século XX seria simplesmente conhecido como o "Século Americano". A sua predição revelou-se presciente : apesar de ter visto a sua supremacia ameaçada pela Alemanha Nazi e, mais tarde, pela URSS, os EUA prevaleceram sobre os seus adversários. Na viragem do milénio, a sua posição de mais poderoso e influente estado do mundo parecia indiscutível. Consequentemente, o século XX foi marcado pelo domínio, não só de um país em particular, mas também do sistema político que o mesmo ajudou a difundi : a democracia liberal. [Há pouco, ouvi Donald Trump afirmar que a UE foi inventada para prejudicar os EUA, quiçá reflexo pós prandial do presidente, logos após as visitas de Macron e Merkel à Casa Branca...]

 

   O artigo procede então à análise desse fenómeno de vocação universal, assinalando que seria tentador atribuir tal apelo à inerente bondade de tal sistema: se cidadãos indianos, italianos ou venezuelanos pareciam leais ao seu regime político, seria certamente por terem desenvolvido um profundo compromisso, quer para com os direitos individuais, quer para com a autodeterminação colectiva. E polacos e filipinos iniciariam a transição da ditadura para a democracia porque, afinal, também viriam a partilhar da universal aspiração à democracia liberal.

 

   Só que os eventos da 2ª metade do século XX também se podem interpretar de modo muito diferente. Por esse mundo fora, muitos cidadãos foram atraídos pela democracia liberal, não simplesmente em razão das normas e valores desta, mas por lhes prometer o mais conveniente modelo de êxito económico e geopolítico. Todavia, segundo os mesmos articulistas, parece virar-se o feitiço contra o feiticeiro: Como as democracias têm piorado no fomento dos padrões de vida dos seus cidadãos, movimentos populistas que descartam o liberalismo vão emergindo, de Bruxelas a Brasília, de Varsóvia a Washington. Um impressionante número de cidadãos começa a dar menos importância ao facto de viver em democracia : enquanto 2/3 dos americanos com mais de 65 anos afirmam que lhes é essencial viver em democracia, menos de 1/3 dos com menos de 35 diz o mesmo. E uma minoria crescente de cidadãos se vai declarando aberta a alternativas autoritárias : de 1995 a 2017, a faixa de franceses, alemães e italianos que se dizem favoráveis a regimes autoritários mais do que triplicou.

 

   A preocupação destes articulistas da Foreign Affairs é sobretudo resultante do facto de que, enquanto a proeminência das democracias tem empalidecido, a parte do produto económico atribuível aos estados autoritários tem rapidamente crescido. Em 1990, países considerados "não livres" pela Freedom House (a categoria mais baixa, que exclui países "parcialmente livres", como Singapura) representavam 12% do rendimento global. Hoje, respondem por 33% dele, chegando ao nível que haviam conseguido no início dos anos 1930, durante o surto do fascismo na Europa, e ultrapassando as alturas que atingiram na Guerra Fria, quando o poder soviético estava no auge... [Nota bem, Princesa, que não se comparam aqui, nas duas épocas, os mesmos países nas categorias de livres e não livres...]

 

   Consequentemente, o mundo aproxima-se agora de um marco chocante: dentro dos próximos cinco anos, a parte do rendimento global detida por países considerados "não livres" - como a China, a Rússia e a Arábia Saudita - ultrapassará a parte pertencente às democracias liberais ocidentais. No prazo de um quarto de século, as democracias liberais terão passado de uma posição de força económica sem precedentes para uma inaudita posição de fraqueza económica.

 

   Eis mais um exemplo de como continuamos a reflectir a realidade em espelhos do passado. O crescimento económico não mais é função do liberalismo dito democrático, pode verificar-se em regimes autoritários, onde coabitam um capitalismo de estado e um sector privado por aquele controlado. Tal como, nas democracias ditas liberais, a concentração da acumulação da riqueza criada em grandes grupos económicos já conseguiu mesmo contornar as legislações anti trust, quer pelo anonimato, quer pela obscuridade dos reais detentores do poder financeiro. A razão de tudo isto é que nos entregámos às promessas do êxito económico que por aí se chama sucesso (como repetia um nosso ex-primeiro e ex-presidente: "Portugal é um país de sucesso!"  - como hoje, ironicamente, verificamos), e nos esquecemos de que só pode haver desenvolvimento económico se ele for, por natureza, por vontade, por prática, por participação e por finalidade, uma melhoria social das condições de vida de todos os membros de uma comunidade e um processo de reciclagem sustentável da riqueza criada, pela responsabilização e para o benefício de todos. E as ditas democracias pretensamente liberais têm falhado tanto esse propósito, que já hoje surgem alternativas, aparentemente viáveis, à cegueira soviética e à selvajaria capitalista, se assim me posso exprimir. 

 

   E talvez não devêssemos esquecer o apelo milenar da mensagem evangélica à justiça económica e social, que hoje o papa Francisco incessantemente recorda e João Paulo II gritou, na esperança de ver o fim da ilusão soviética e da Guerra Fria abrir os olhos do Ocidente para uma possibilidade democrática livre da obsessão do triunfo do dinheiro e criadora de valor humano.

 

   Será mesmo assim tão difícil percebermos que, em economia política, há só uma prioridade cristã?

 

Camilo Maria


Camilo Martins de Oliveira

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