CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA
Minha Princesa de mim:
Na sua edição de maio/junho deste ano, a revista Books publica, em antevisão da saída a público, no próximo outono, do livro Quatre Essais sur la Traduction, do sinólogo suíço Jean-François Billeter, uma entrevista com este autor. Na linha das teses de outros notáveis estudiosos da China, designadamente da actualidade do seu pensamento e cultura (incluindo, claro está, a filosofia chinesa), tais como Anne Cheng e os coautores de La pensée en Chine aujourd´hui, de que já te falei, Billeter contesta o fundamentalismo da ideia tão difundida - e tão central, por exemplo, na obra do grande sinólogo francês François Julien - de que o Ocidente e a China são dois mundos, não só diferentes e alheios, mas até opostos, no plano do pensamento. Além das razões de fundo que invoca, o autor suíço considera que tal ideia de que a China seja radicalmente diferente é perniciosa, pois segue o discurso que o actual regime chinês tenta impor, deixando crer que a democracia, os direitos do homem, a ideia republicana são invenções ocidentais incompatíveis com a mentalidade chinesa... Para Billeter, o mito da alteridade chinesa, tão divulgado na Europa, surge com Voltaire e os iluministas que, curiosamente, como aliás te disse em carta anterior, o foram buscar aos missionários jesuítas, que procuravam justificar a sua política de conversão do império chinês a partir de cima e, por isso, criaram uma imagem favorável dos soberanos chineses, do seu governo, do mandarinato que governava o império, e do confucionismo que constituía a chave da abóbada do universo intelectual mandarínico.
Retomarei esta reflexão nas considerações acerca do Tianxiao, que te prometi, Princesa de mim. Mas deixa-me agora só traduzir-te uns trechos da entrevista de Billeter à Books, que nos ajudam a perceber a configuração familiar da organização política, de que te falei em conversa sobre o encontro intercoreano. Na verdade, o sinólogo suíço não nega que haja profundas diferenças entre o Ocidente e a China, mas insiste em que, simplesmente, prefere postular a unidade da experiência humana e, a partir daí, procurar compreender a realidade chinesa no que ela tem de particular, do que seguir o caminho inverso. Quando damos prioridade à diferença, perdemos de vista o fundo comum, enquanto que, se partirmos deste, as diferenças surgem por si próprias... E quais serão essas diferenças? Responde:
A China caracteriza-se por uma certa concepção do poder e do seu exercício, em que o político, o familiar e o religioso se confundem. Tal é inegável e é uma chave para a compreensão do país - o fio de Ariana da sua história. [Já te referia esta nota, ao falar-te, Princesa, no Les Trente «Empereurs» qui ont fait la Chine de Bernard Brizay]. Mas, afinal, que tão certo conceito é esse?
Nasceu por volta do ano mil antes da nossa era, quando a dinastia dos Zhou derrubou a dos Shang. Criou-se então uma ordem nova, para que a vitória conseguida nos campos de batalha tivesse amanhã. O fundador da dinastia Zhou procurou transformar os aliados circunstanciais que o tinham ajudado a tomar o poder em aliados permanentes, e, para o efeito, ele e os seus conselheiros tiveram uma ideia genial: reinterpretar as relações do rei com os seus vassalos em relações familiares. Todos se tornaram irmãos, sendo o rei considerado o primogénito. Como era fácil prever que tal família aristocrática fosse, no decurso das gerações, crescendo e multiplicando-se, e que tal multiplicação acabasse por fazer perigar a estrutura familiar, os Zhou conceberam maneira dela se poder estender sem que nela se introduzisse qualquer desordem. Criaram um sistema capaz de organizar uma família de várias dezenas, ou centenas ou mesmo milhares de membros, reunindo até quatro gerações em simultâneo, sem que alguma vez pudesse haver ambiguidade sobre a ordem de precedência de sequer dois dos seus membros, fossem eles quem fossem. Forjaram uma nomenclatura capaz de identificar exactamente o lugar de cada um nessa hierarquia geral. Tal nomenclatura, que faz da organização familiar um sistema de domínio político, perpetuou-se, no essencial, até hoje. É sem dúvida uma das grandes criações do espírito humano e uma especificidade chinesa.
E assim, Princesa de mim, quem hoje quiser entender o que é o poder do actual presidente Xi Jinping, terá de ter presente esta herança histórica, bem iluminada por aquele texto de Sun Yatsen, primeiro presidente da República da China, no princípio do século passado, que te citei em carta passada, e do qual hoje apenas te repito a última frase: Os países estrangeiros fizeram guerras de religião ou bateram-se pela liberdade; na China, desde há milhares de anos que perpetuamente nos batemos por esta simples questão: tornarmo-nos imperador. A consolidação e persistente reforço da autoridade de Xi Jinping parece trazer-nos mais um exemplo de tal vocação. Mas a circunstância em que o poder central (imperial?) tende a afirmar-se também poderá travar-lhe ou desviar-lhe o percurso, por força, isolada ou simultânea, de irreversíveis crises: sejam elas da economia (abrandamento, estagnação do crescimento), da sociedade (desequilíbrios regionais e desigualdades sociais), do aparelho político (surto de movimentos contestatários ou lutas intestinas no próprio PC), e ainda das relações internacionais (conflitos geoestratégicos no sudeste asiático, excedentes comerciais). É todavia opinião de conceituados politólogos como Jean-Pierre Cabestan, investigador no CNRS francês e director do departamento de ciências políticas e estudos internacionais da Universidade Baptista de Hong Kong, que se mantêm sólidos os obstáculos a qualquer mudança política, faça-se esta por calma evolução ou por ruptura: o poderio e a modernização do Partido-Estado, o carácter soviético e, portanto, eficaz do seu sistema repressivo, o inegável, prodigioso até, êxito económico de que pode vangloriar-se, a despolitização da sociedade, o seu nacionalismo e a superficialidade da sua cultura democrática, a fraqueza da sociedade civil e o conservadorismo geral das elites económicas e intelectuais, tal com a sua dependência relativamente às elites políticas do PC.
Resumindo o discurso, Princesa de mim, e continuando a seguir Jean-Pierre Cabestan, a China tem mais probabilidades de evoluir para um regime ainda bastante autoritário, elitista, paternalista e imperial. O PC continuará a alternar períodos de endurecimento e de alívio político, mas recusará propor qualquer saída do sistema actual. Pelo contrário, ao instrumentalizar a sua alteridade cultural, a República Popular continuará provavelmente a constituir o principal desafio político às nossas democracias e, mais ainda, ao modo como compreendemos o político e a vida política.
Num artigo intitulado L´utopie inclusive - Zhao Tingyang, publicado no suplemento Idées de Le Monde (24/03/2018), Frédéric Lemaître argumenta que, apesar do filósofo chinês Zhao Tingyang pretender que a sua filosofia nada tem a ver com a política chinesa actual, o mesmo desenvolveu o conceito milenário de tianxia, que visa pensar o mundo como um todo, suprimindo qualquer ideia de estrangeiro ou de inimigo. Na orla das realidades actuais, tal teoria política é por alguns percebida como alavanca do nacionalismo chinês. Já te-lo tinha referido, Princesa, repito-o agora para ligar o que nesta te escrevi ao que te direi em próxima carta sobre tal filosofia: tenho comigo duas versões francesas, ambas em tradução de Jean-Paul Tchang, a de Tianxia - tout sous un même ciel, de Zhao Tingyang (Les Éditions du Cerf, Paris, 2018) e a de Du Ciel à la Terre - La Chine et l´Occident ( Les Arènes, Paris, 2014) selecta de correspondência entre o filósofo chinês e o francês Régis Debray. Para te abrir o apetite do tema, traduzo-te as primeiras linhas do epílogo do Adam Smith in Beijing, do falecido Giovanni Arrighi (Verso, 2007):
Partimos de uma questão central: podemos ou não considerar que, apesar das suas insuficiências e dos reveses que não deixará de encontrar, a ascensão da China constitui um sinal anunciador de uma era de maior igualdade e respeito mútuo entre os povos de origem europeia e os povos de origem não europeia, tal como Smith predizia há duzentos e trinta anos? A análise proposta neste livro tende para uma resposta positiva, o que não exclui importantes reservas.
Continua em próxima carta...
Camilo Maria
Camilo Martins de Oliveira