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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA


Minha Princesa de mim:

 

   Na sua segunda meditação sobre a beleza (cf. Cinq méditations sur la beauté, Albin Michel, Paris 2008), François Cheng, um dos meus companheiros espirituais, exclui qualquer utilização de beleza como instrumento de engano ou dominação, pois tal seria a própria feieza (os dicionários dizem fealdade, mas eu, ao dizer beleza, não digo beldade...). E explica que sim, deve sempre evitar-se a confusão entre a essência de uma coisa e o uso que lhe possamos dar. E como isto é verdade quanto à beleza! Cito-te esta afirmação agora, porque me recorda a reflexão medieva - e os debates! - sobre estética, que Umberto Eco tão metodicamente analisou, ele que se conta entre os grandes estudiosos do pensamento medieval europeu e, neste capítulo, da filosofia estética de Tomás de Aquino. Iremos lá depois, noutra carta. Por enquanto, deixa-me recitar François Cheng: a beleza é algo virtualmente aí, desde sempre aí, um desejo que jorra do interior dos seres, ou do Ser, qual inesgotável fonte que, mais do que figura anónima e isolada, se manifesta como presença radiante e religante, que incita ao consenso, à interação, à transfiguração. Relevando do ser e não do ter, a verdadeira beleza não poderá ser definida como meio ou instrumento. Por essência, é uma maneira de ser, um estado de existência. Observemo-la através de um dos símbolos da beleza: a rosa.

 

   Curiosamente, correndo o risco de entrar em banalização, o filósofo-poeta colhe a flor, lembrando-me aquela lindíssima ária de Il trionfo del Tempo e del Disingano do Haendel, em que Piacere (o Prazer) tenta converter a si a Beleza, contra a razão do Tempo e do Desengano, personagens que sobre o Prazer triunfarão, neste primeiro oratório de Georg Friedrich Händel, ainda nos seus vinte anos, com libreto do cardeal Benedetto Pamphili, já com cinquenta e quatro de idade (em carta por te enviar falo mais dessa obra e seus autores): Lascia la spina, / cogli la rosa; / tu vai cercando / il tuo dolor... Traduzo a ária toda: "Deixa o espinho, colhe a rosa ; estás buscando a tua dor. Encanecida geada furtivamente te cobrirá, quando menos a espera o coração". Mas, já no oratório de Händel, sairá derrotado o prazer, pois o efémero escolherá a eternidade. Pensossinto, ó de mim Princesa, que sempre, a contemplação do efémero é uma cancela sobre dois caminhos: o da complacência no imediato da beldade, ou o da sublimação até à essência da beleza. Tal como diz Paul Claudel numa das suas intimíssimas Cent Phrases pour Éventails, inspiradas por haiku japoneses: Seule la Rose / est assez fragile / por exprimer / l´Éternité - pois sentimo-la, como diz Claudel ainda, e eu traduzo, um certo perfume / que só cheiramos / fechando os olhos... e... Fechamos os olhos / e a Rosa diz / Sou eu!  François Cheng vai buscar a Angelus Silesius, poeta germânico setecentista, que se filia na tradição mística renano-flamenga -que também tenho como muito minha, sobretudo por Mestre Eckhart, dominicano do século XIII, de quem já muito te falei - estes versos que livremente te traduzo:

 

               A rosa é sem porquê,

               floresce por florescer,

               sem ter de olhar para si,

               sem desejo de ser vista.

 

   Da atualidade da rosa, te posso lembrar, Princesa, traduzindo-te a abertura da primeira meditação de Cheng sobre a beleza: Nestes tempos de misérias omnipresentes, de violências cegas, de catástrofes naturais ou ecológicas, falar da beleza poderá parecer incongruente, inconveniente, quiçá provocador. Quase um escândalo. Mas precisamente em razão disso, vemos que, no oposto ao mal, se situa a beleza, mesmo na outra ponta de uma realidade que temos de enfrentar. Estou persuadido de que temos a tarefa urgente, e permanente, de encarar esses dois mistérios que constituem as extremidades do universo vivo: de um lado, o mal; do outro, a beleza. E prossegue dizendo que o mal é sobretudo aquele que o homem inflige ao homem, a beleza sendo como que uma enigmática evidência que nos espanta: o universo não tem obrigação de ser belo mas é, contudo, belo... E interroga-se sobre o que significa então a beleza para a nossa existência, procurando entender o que significa a frase de Dostoïevsky no Idiota: A beleza salvará o mundo. Chega assim a esse inescapável sentimento íntimo - que já tantas vezes nos desafiou nestas cartas - de que o mal e a beleza são antagónicos mas inseparáveis, na medida em que nesta se tende a encaixar aquele, a fazer dela uma máscara enganadora do maligno... Eis como me leva a reencontrar essa preocupação da nossa tradição greco-cristã acerca de uma qualquer hipotética dissociabilidade do vero-bom-belo. Mas não voltarei agora, Princesa de mim, ao meu outro mestre, Tomás de Aquino, que tanto se interrogou sobre a estética como fundamento da independência artística, musical e poética - se assim posso, ao jeito hodierno, exprimir-me. Nem tampouco abordarei o tema da iconofilia e da iconoclastia, nas tradições monoteístas, judia, cristã e muçulmana. Fico-me, com o nosso tão amigo François Cheng, pela meditação, em modo talvez taoista - mas tão próximo da mística e da arte cristãs que mais venero -, dessa surpresa sempre inesperada na sua permanência, talvez o laço que mais firme e fielmente nos una ao universo que é nossa morada: a beleza como raiz e devir de tudo. Aprendi muito com a minha cerejeira do Japão, que todos os anos floresce porque floresce, e não dá frutos, e cujas flores sem saber de si me encantam e me levam para muito longe quando fogem com o vento, talvez então muito mais próximas de mim comigo, porque não as tenho e apenas sou com elas, simplesmente. O efémero torna-se assim num sacramento de eternidade.

 

   Regresso por aí à meditação de François Cheng sobre a beleza e a rosa, escolho um trecho que me ocorrera ao ler um bilhete  de uma amiga minha, pintora, mulher, mãe e avó, completada pela família e pelo campo onde vive em natureza, e pelo ateliê, onde nem todos os dias são tranquilos ou gloriosos, porque até nas coisas que mais gostamos de fazer, ou que maiores alegrias nos dão, pode insinuar-se a perplexidade, um quase desânimo, talvez mesmo a tentação maléfica (?) de desistir, de destruir até. O mal detesta a beleza, tentará aniquilá-la, mas a beleza não se livra do mal pela violência de um apagão, tal não é próprio dela. Ela é positiva, criadora, não é negativa. Lembras-te, Princesa, de que já nas aulas de física, no liceu, sabíamos que um corpo frio não pode acender outro, mas um corpo quente sempre transmite o seu calor? Diz então o poeta sino-francês:

 

   Na verdade, a rosa é sem porquê, como todos os viventes, como todos nós. Se todavia um observador ingénuo quisesse acrescentar algo, poderia dizer isto: ser plenamente uma rosa, na sua unicidade, e nada mais, eis o que já constitui suficiente razão de ser. Tal exige da rosa que ela ponha em combate toda a energia vital de que está carregada. Desde o instante em que emerge do solo, o seu esteio irá crescendo como que movido por inabalável vontade. Através dele se fixa uma linha de força que se cristaliza num botão. A partir desse botão, as folhas e depois as pétalas ir-se-ão formando e dispondo, seguindo esta curva, aquela sinuosidade, optando por este tom, aquele aroma. Doravante nada a poderá impedir de aceder à sua assinatura, ao seu desejo de cumprimento, alimentando-se da substância vinda do chão, mas também do vento, do orvalho, dos raios do sol. Tudo isto com vista à plenitude do seu ser, uma plenitude posta já no seu germe, já num muito longínquo começo, podemos até dizer que desde toda a eternidade.

 

   Eis enfim a rosa que se manifesta em todo o brilho da sua presença, propagando as suas ondas rítmicas para aquilo a que aspira, o puro espaço sem limites. Nesta tarde tão cinzenta e mansamente chuvosa, estou, tolhido de dores físicas que me desafiam, conseguem irritar, mas fugirão assim que eu me cale e olhe para os campos que avisto, verdes e agradecidos à grisalha húmida que os cobre, na quietação do meu gabinete, há meia hora acompanhando o lento deslizar de um caracol que, do lado de fora, percorre vários vidros da janela que me alumia. Ao vê-lo solto da casa que transporta, esticado, mas creio que ondulante sobre a superfície lisa e transparente - que me deixa vê-lo por debaixo e, à luz pálida do dia silente, me revela o seu corpo translúcido - recordo uma do católico Claudel no seu Connaissance de l´Est, que François Cheng cita (et pour cause!):

 

      Mas o que é o Tao? ... Por debaixo de todas as formas, o que não tem forma, o que vê sem olhos, o que guia sem saber, a ignorância que é o supremo conhecimento. Seria errado chamar Mãe a esse suco, a esse sabor secreto das coisas, a esse gosto de Causa, a esse estremecimento de autenticidade, a esse leite que nos ensina a Nascente? Ah!, estamos no meio da natureza como ninhada de leitões que mamam numa cerda morta! Que nos diz Lao Tseu, se não que cerremos os olhos e ponhamos a boca na própria fonte da Criação? E fecho esta carta acentuando a sua nota intimista, com uma citação de São Bernardo de Claraval (Sermones in Cantica256): Pulchrum interius speciosus est omni ornatu extrínseco, omni etiam regio cultu... Ou seja, Princesa: A Beleza mais íntima brilha melhor do que qualquer ornamento extrínseco, bem mais, até, do que qualquer paramento régio.

 

   Mas como, em dias de penumbra pluviosa, sempre me acodem, inesperadamente, lembranças que vêm mesmo a calhar para me ilustrar o pensarsentir, deixo-te mais uma que ora me socorreu. É do filme La Strada, do Fellini (1954), quando o equilibrista louco (Il Matto) diz a Gelsomina (representada pela inesquecível Giulietta Masina): Se eu soubesse para que serve este calhau, seria Deus, que tudo sabe. Quando nasces. E também quando morres. Este calhau serve com certeza para qualquer coisa. Se for inútil, tudo o mais será inútil, mesmo as estrelas. E também tu, com essa cara de alcachofra, para alguma coisa hás de servir.

 

Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira