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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

   Começo esta, reproduzindo dois versos de Angelus Silesius, citados e traduzidos noutra carta:

 

              Sem querer saber de si

              nem vontade de ser vista

 

   O que, afinal, aí fica dito é, segundo François Cheng, que o porquê de uma rosa sendo ser plenamente uma rosa, o instante da sua plenitude de ser coincide com o próprio Ser. Dito de outro modo: o desejo da beleza absorve-se na beleza e esta já não tem que se justificar. E, agora, com o poeta-filósofo sino-francês recordo o que ele disse das três aceções da palavra sentido: sensação, direção, significado, aqui pela rosa enumeradas como sendo três estados essenciais do Ser. Mas presta atenção, Princesa: a sensação não poderá limitar-se ao seu nível sensorial, e a beleza é mesmo essa potencialidade e essa virtualidade para que tende qualquer ser. Eis que, quase inevitavelmente ainda, deslizamos da palavra portuguesa «sentido» (du mot français «sens», no texto original de Cheng) para um caracter chinês que lhe é equivalente, talvez mais rico, o caracter yi.

 

   Vou falar-te muito dele, levar-nos-á longe -  esmo até à tianxiá - só tenho pena de não poder (saber) reproduzi-lo, para ti, na escrita deste computador, pois tal nos ajudaria a acertar o passo com um discurso bem chinês. Confio, contudo, a François Cheng, a explicação do respetivo desenho (13 traços) ou significado, cada caracter sínico sendo, não uma letra, nem necessariamente uma palavra, mas, sim, a representação gráfica da formação de um conceito:

 

   Basicamente, o ideograma yi designa o que vem da profundeza de um ser, o impulso, o desejo, a intenção, a inclinação; o conjunto desses sentidos pode ser aproximadamente englobado pela ideia de «intencionalidade». Combinado com outros caracteres, dá uma série de palavras compostas e de variados sentidos, mas tendo entre elas laços orgânicos: grosso modo, podemos arrumá-las em duas categorias. A das que relevam do espírito: ideia, consciência, desígnio, vontade, orientação, significação. E a das que pertencem à alma: encanto, saber, desejo, sentimento, aspiração, impulso do coração. Finalmente, a encimá-las todas, a expressão yi-jing, «estado superior do espírito, dimensão suprema da alma».

 

   Essa noção, yi-jing, deve ser sublinhada. Tornou-se, para os chineses, no critério mais importante para ajuizar o valor duma obra poética ou pictórica. Pela sua definição, vemos que ela se atém tanto ao espírito como à alma. Quer aos do artista que cria a obra, mas igualmente aos do universo vivo, um universo que se faz, que se cria, que a língua designa por Zao-wu, «Criação», ou ainda Zao-wu-zhe, «Criador». Dum modo geral, diz-se muitas vezes que o pensamento chinês não teve a ideia da «Criação», no sentido bíblico do termo. É verdade que esse pensamento não foi assombrado pela ideia dum Deus pessoal; mas em contrapartida tem eminentemente o sentido da proveniência e da geração, como atestam as afirmações de Laozi: «O que há provém do que não há»; «O Tao original gera o Um, o Um gera o Dois, o Dois gera o Três, o Três gera os Dez mil seres». [Terá sido ao Taoísmo que o António Victorino d´Almeida foi buscar aquela, bem achada, do nascimento da música? «O dó conheceu o ré, e simpatizaram; dessa simpatia nasceu o mi, e assim se fez música»... Ele tinha graça, a explicar isto ao piano!]

 

   Ora a escrita sínica e o seu pensamento desenvolve-se precisamente por processo de encontro e geração. Procurando não te dar sono nem, menos ainda!, aborrecimento, explicarei o que quero dizer através da génese e constituição de um caracter chinês. Antes, e a título de apontamento sugestivo, lembro-te de que, quando se aprende a caligrafar tais caracteres, se começa pelos primeiros: um traço horizontal para escrever um, outro horizontal abaixo dele e ambos nos dizem dois, e o terceiro, debaixo desses vem anunciar três. E se evocarmos o Tao original, perceberemos o modo linear e simplíssimo como se inicia a ordem do universo todo, já que do três se parte para a geração dos Dez mil seres. Leio nos Sinais Celestes (Tianwen) do Huainan zi, uma "Summa" taoista com mais de dois mil anos: O Dao começou pelo Um. O Um não engendrou, mas, dividindo-se gerou o yin e o yang. O yin e o yang uniram-se harmoniosamente e assim foram engendrados os dez mil seres. Por isso dizemos: Um engendrou dois, dois engendrou três, três engendrou os dez mil seres. [[Dita assim, ou assim traduzida, como faz François Cheng na citação acima, esta última frase reproduz a de Laodan ou Laozi no Daode jing (século IV a.C.)]] O um representa assim a unidade primordial, e é o primeiro radical de todos os outros caracteres. Nesta função, se for traçado no topo de um composto, por exemplo, sobre os três traços que dizem homem, tal nova composição significará o céu, tian, isto é, o espaço infinito que está acima do ser humano, que é a mais alta das criaturas, e o governa. Mas se for traçado por baixo do caracter que designa o dia, ou o sol, irá compor o ideograma que diz madrugada, o princípio do dia... Espero ter conseguido dar-te uma ideia aproximada da formação de um discurso de perceção e representação, pegando num caracter primitivo e acenando o seu papel de radical, embora não entrando por qualquer possível (e real) função fonética.

 

   Nota bem que os caracteres sínicos existentes são aos milhares, o aumento do seu número, aliás, tendo acontecido por impulso ou necessidade de expressão... Só as autoridades e as escolas, afinal, foram impondo limitações canónicas. Indo a regras de facto, desde 1716 (dicionário de Kang-hsi), contam-se 40 mil caracteres, dos quais 4 mil são de uso corrente, 2 mil para nomes próprios ou raros, e 34 mil sem utilidade. E, se a arte da caligrafia pode permitir liberdades de estilo, há regras obrigatórias, tal como as que ordenam a sequência e a direção de cada traço : de cima para baixo; da esquerda para a direita; quando um vertical e um horizontal se cruzam, este risca-se primeiro, embora haja exceções; três verticais na mesma linha traçam-se ao centro, logo à esquerda, depois à direita; mas o traço que corte um central é o último; e os diagonais da direita para a esquerda (a partir de cima) precedem os da esquerda para a direita. Estas foram as regras que primeiro aprendi, tentando entender um método de ligação do pensarsentir com a mão que desenha e a representação traçada. Neste instante, conversando contigo, Princesa, olho para o caracter yi - que François Cheng diz designar o que vem da profundeza de um ser, impulso, desejo, intenção, inclinação, podendo o conjunto destes sentidos ser aproximada e globalmente definido pela ideia de «intencionalidade» - e nele encontro três caracteresjá meus conhecidosque o compõem : em cima está, como leio pelo meu dicionário japonês de 1850 kanji essenciais, ritsu (5 traços), que quer dizer levantar, erguer, estar de pé ; no centro, nichi, jitsu ou hi (4 traços), isto é, o dia, o sol; em baixo, shin (4 traços), a dizer espírito, coração, mente. Posso assim sentir que yi designa a ascensão ou o erguer do espírito esclarecido, iluminado. Ou, seguindo a ideia de «intencionalidade», pensá-lo como esse íntimo impulso do espírito humano com destino às coisas superiores, algo quase como essa definição do grego Plotino (270aC): A inteligência é o pensamento que se desvia das coisas inferiores, para elevar a alma ao que é superior.

 

   A escrita chinesa é só ideográfica, nem sequer dispõe de silabários fonéticos, como os hiragana katakana com que o japonês socorre as próprias carências, visto que os kanji (caracteres chineses, com que começou a ser escrito) não o traduziam totalmente enquanto língua falada, que já era. De facto, o chinês falado ou, se assim preferires, Princesa, o chinês fonético vive em diversos dialetos, dos quais são mais conhecidos o mandarim e o cantonês, sendo o primeiro praticado nas escolas, com o objetivo de normalizar uma fonética oficial que também cimente a união de vastíssimo e populosíssimo império. O chinês escrito, ou literário, é como que uma língua à parte, só se escreve e lê, por isso tem uma autonomia que lhe permite ser utilizado por várias línguas e dialetos.

 

   Cada sinal, ou caracter, é uma palavra, um ideograma traduzindo um conceito linguístico. Durante a escolaridade elementar, as crianças já devem memorizar centenas de caracteres e, no decurso das suas vidas, os chineses (e, noutra medida, os japoneses) irão estudando e aprendendo, pelo menos, mais um ou dois milhares. Ser letrado, na cultura sínica, mais do que erudito, é ser sempre aprendiz. Assim podemos afirmar que a consciência de devir inspira e informa o ser chinês, o yi é isso mesmo, como vimos, o yi-jing sendo o estado superior da alma. Conto-te tudo isto, Princesa de mim, para pensarsentires como o "aprender a ler e a escrever" é, no caso do Império do Meio, simultaneamente a construção de um caminho e de uma identidade em que as pessoas e a nação estão intimamente ligadas pela inspiração e pela formação.

 

   Não sou antropólogo nem linguista, e tenho mais curiosidade e apreço pelas culturas do Extremo Oriente - sobretudo numa época em que ressurge e se vai afirmando, já não como império recluso cuja capital é cidade interdita, mas no concerto internacional, uma China gigantesca, progressista e aberta ao mundo todo - do que conhecimento profundo delas. Mas gosto de ir aprendendo e partilhando contigo, Princesa. Pouco mais posso ou sei fazer, na minha idade. Não te ensino nada. Apenas partilho contigo, repito, a minha própria aprendizagem, com os seus-meus erros e percalços, mas também com os horizontes que se me abrem ao olhar da alma e me ajudam a ver e rever o mundo.

 

   Podia ter-te falado do Um, não só como imagem do Todo inicial, do Dao que não é a causa primeira em sentido aristotélico, nem o Deus pessoal e criador das três religiões monoteístas, o Deus de Abraão, mas do sem forma definida, cuja natureza é dada a tudo o que existe, que é o Céu e o conhecimento perfeito, o onde habita o homem verdadeiro, qua aí tem o coração ligado, e onde serão reconduzidas todas as dez mil diferenças. O Yuandao, ou Dao original, diz-nos, logo no começo, o Huainan zi, o Dao ...

               

cobre o Céu e carrega a Terra.
Estende-se pelas quatro direções e abre-se até às oito extremidades.
A sua altura é inacessível, insondável a sua profundeza; abraça o Céu e a Terra e, do
sem forma, faz advir os seres.
Nascente jorrando do côncavo, a pouco e pouco tudo enche; fluxo lamacento e turvo, a pouco e pouco se aclara. 
Erguido, enche o espaço entre o Céu e a Terra, vertido cobre os quatro mares.
Posto a laborar, nunca se esgota, nem conhece aurora nem crepúsculo.

 

Desenrolado, envolve as seis conjunções do mundo, enrolado nem chega a encher a cova da mão.
Concentrado, pode desdobrar-se; obscuro, pode brilhar; fraco, pode ser vigoroso; flexível, pode ser rígido.
Estende as quatro amarras e contém o yin e o yang; coordena o espaço-tempo e faz luzir as três luminárias. 

 

Ora lamacento e lodoso, ora fino e subtil! 
Por ele se elevam as montanhas, e os abismos se cavam,
os quadrúpedes correm e as aves voam,
brilham o sol e a lua,
seguem sua rota planetas e estrelas,
pulam os licórnios e planam as fénixes.

 

   Traduzo-te este poema inicial do Huainan zi, da versão francesa de Charles Le Blanc, publicada na Bibliothèque de la Pléiade (Gallimard, Paris, 2003). Em cartas por seguir te envio outras traduções de trechos desse, tão belo como antigo, texto poético e místico do Império do Meio.

 

Camilo Maria 

 

Camilo Martins de Oliveira