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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

   Prosseguindo o que tenho vindo a escrever-te ou, melhor, continuando, atento e meditativo, a procurar o caminho certo para as minhas hesitações - que é como andar a tentar sair de muitas preocupações sem querer despreocupar-me, pois que nenhum de nós tem o direito de assobiar para o lado - recorro a um confronto de analistas vários de perspetivas da ainda anunciada globalização e, desde logo, do porvir das nossas sociedades e civilizações, das suas evoluções e coexistência. Começo por duas entrevistas reunidas no suplemento Idées de Le Monde de 16 de junho, sábado: uma ao antropólogo francês Maurice Godelier, outra ao mundialmente famoso autor de The End of History and the Last Man, Francis Fukuyama, politólogo americano doutorado em Harvard. Já verás, pelas citações escolhidas para título de cada uma dessas entrevistas, quais são as questões centrais das preocupações de cada um, mas deixa-me primeiro traduzir-te uns trechos da apresentação (Le Monde qui vient) feita pela jornalista Julie Clarini:

 

   «Desocidentalização», «desmundialização», «desdemocratização». Como será possível que estas palavras, a encherem colóquios e círculos de reflexão, não alimentem a nossa ansiedade? O universo que nos era familiar parece desfazer-se à nossa frente. O mundo pós-guerra fria já não existe - ou muito pouco. Quanto ao porvir chão e sem história que se tinha previsto após a queda do muro de Berlim, em 1989, transformou-se num futuro entre lagos, no qual não sabemos qual bússola seguir para encontrarmos o horizonte.

 

   Usemos todavia de prudência [[escolhi traduzir prendre garde por prudência, tenho o propósito de te lembrar essa definição da dita virtude como amor sagaz]] para não vermos apenas derrotas naquilo que nos desorienta. Pode haver coisas boas numa organização planetária mais justa, mais equitativa, e coisas desejáveis numa globalização mais respeitadora dos direitos e do ambiente. A bobine que se esvaziou foi só a nossa. Mas, mesmo assim, poderemos nós não ligar nada a essa tendência mundial de recuo das democracias liberais no mundo? E como não nos afligirmos com o surto de mecanismos autoritários no próprio seio das nossas instituições ocidentais?

 

   Antes de olharmos para as entrevistas, antes mesmo de te citar as declarações titulares delas, destaco brevemente outras três que, de certo modo, se encontram com suposições que, em cartas anteriores, já te manifestei. Não só a de que chegamos a um mundo com novas liberdades e afirmações (Maurice Godelier diz que vivemos o fim do domínio ocidental) como a de que o Tianxiá (a cuja análise voltarei) é uma proposta para ser internacionalmente considerada (surpreendentemente, Fukuyama diz que o Estado autoritário de Pequim oferece ao mundo um modelo alternativo), tudo isso possivelmente decorrente do facto, também já recordado, de que a difusão do capitalismo, em vez de implantar a democracia liberal, produziu o efeito inverso (frase esta de Cordelier). Para este notável antropólogo de formação filosófica, diretor científico no CNRS, que trabalhou com Fernand Braudel e Claude Lévi-Strauss -  hoje em dia os países emergentes recusam que lhes ditem as suas condições de existência...  ...entendem construir um futuro identitário próprio. Daí, o título escolhido para a sua entrevista: Modernizar-se sem se ocidentalizar. O que não determina, necessariamente, uma eliminação do Ocidente: O Ocidente não será marginalizado, mas será simplesmente posto no lugar que pode ocupar - o de uma potência importante, mas não mundialmente dominante. E é absolutamente preciso que o Ocidente aceite este novo dado. Também neste sentido te disse que, não sendo perfeita, a política de Obama levava em linha de conta o surto desta nova realidade. Coisa que o atual voluntarismo trumpista do America First não pode, nem sabe, infelizmente, entender.

 

   Por outro lado, Francis Fukuyama, cuja profecia de fim da história, pelo triunfo, após a derrocada do comunismo soviético, do capitalismo e da democracia liberal, se defronta hoje com dúvidas internas e contestações externas, interroga-se sobre como O mundo aberto e democrático está sob pressão (título da sua entrevista) e vai sugerindo que devemos regressar ao conceito de uma identidade nacional integradora, considerando-a como base de uma comunidade democrática em que gentes diferentes podem viver e trabalhar juntas... Talvez por isso o título do seu próximo livro, com saída prevista para setembro seja: Identity. The Demand for Dignity and the Politics of Resentment.

 

   A disparataria (ou dispirataria?) de infelizes populismos, nos EUA e na Europa, parece assim ter, pelo menos, a virtude de levar gente séria a pensar, a pensarsentir e a explicar-se, apontando caminhos possíveis para a reflexão e bom entendimento conjuntos do nosso - ao que tudo indica - inescapável destino global, comum e participado. Não digo equitativamente participado, porque não gosto de pleonasmos. E vai-se alargando o campo de incidência dessa preocupação sobre a crise atual do "Ocidente", seus regimes e sistemas políticos e económicos, seus preconceitos e inércias, suas projeções ainda tão ignorantes dos outros. Basta passarmos os olhos pelo sumário da mais recente edição da Foreign Affairs, a de julho/agosto de 2018, com o tema de capa «Which World Are We Living In?»: Realist World; Liberal World; Tribal World; Marxist World; Tech World: Warming World. E ainda mais elucidativos são os temas de ensaios neste número publicados: desde a extensa sombra do 11 de setembro (2001), How  Counterterrorism Warps U.SForeign Policy,  aos inimigos que estão no interior da NATO, isto é, de como o declínio democrático pode destruir essa aliança organizada, até à necessidade de os governos investirem nos povos, corrigindo desigualdades, ou à de devermos rever o mito da ordem liberal... Este último tema é tratado pelo reputado professor de ciência política da Harvard Kennedy School, Graham Allison, sob o título (traduzo) de O Mito da Ordem Liberal - do Acidente Histórico à Sabedoria Convencional. Achei curioso o epíteto que tal autor cola ao conceito que ora se propõe analisar: algo como gelatina conceitual. Explica-o assim: A ambiguidade de cada um dos termos na designação "liberal international rules-based order" dá uma escorregadela que permite aplicar o conceito a quase qualquer situação. Quando, em 2017, membros do World Economic Forum, em Davos, coroaram o presidente chinês Xi Jinping líder da ordem económica liberal - sendo, contudo, que ele encabeça a mais protecionista, mercantilista e predadora das maiores economias mundiais - revelaram que, pelo menos nesse contexto, a palavra "liberal" se tornou não vinculativa. E a meu ver, Allison tem razão em dizer que a expressão "rules-based order" é redundante, já que, por natureza, a ordem é feita por regras e regularidade, tal como quando acrescenta que os proponentes de uma ordem internacional liberal assente em regras pensam numa ordem que incorpore boas regras, equitativas e justas. Mas, assim como poderia evocar a Animal Farm do George Orwell (all animals are equal but some animals are more equal than the others), vai recorrer ao estrategista indiano C. Raja Mohan para observar que, na dita ordem internacional, as superpotências são "excecionais", isto é, quando decidem que algo convém aos seus propósitos, abrem exceções para si mesmas. O facto de, nos primeiros dezassete anos deste século, o auto proclamado líder da ordem liberal [os EUA] ter invadido dois países, conduzido ataques aéreos e operações de forças especiais para matar centenas de pessoas que unilateralmente classificou de terroristas, e sujeitado uma data de outras a uma "rendição extraordinária", muitas vezes sem qualquer autoridade internacional legal (e mesmo algumas sem autoridade nacional legal) - tal facto fala por si.

 

   Já em correspondência anterior falávamos, Princesa de mim, da urgência de progressiva construção de estruturas jurídicas e políticas internacionais que permitam acolher e fomentar o entendimento e consolidação de uma tão necessária cultura da paz, incluindo, em tais reformas, a revisão dos estatutos e regras de funcionamento da ONU. Para tal, parece-me necessário que comecemos por nos livrar de cargas de ideias feitas, da inibição de preconceitos, e do comodismo de uma inércia adquirida que, desde logo, nos fecham olhos e ouvidos aos sinais dos tempos hodiernos, assim obstruindo rotas de descoberta de um mundo emergente, com novos atores despertados, em várias escalas, por resgatadas consciências de si mesmos e da sua circunstância global e regional. Lembra-te do que te escrevia nessas cartas.

 

   Repetindo um escrito de Francis Fukuyama no seu The End of History and the Last Man: Talvez estejamos a assistir, não só ao fim da Guerra Fria, ou ao passamento de um período particular da história do pós-guerra, mas ao fim da história como tal, isto é, ao ponto final da evolução ideológica da humanidade e à universalização da democracia liberal ocidental como forma perfeita do governo humano  -  não consigo deixar de recordar os sábios chineses que dizem ser a China um devir constante, um contínuo de passagens de potência a ato, para me referir a um conceito aristotélico-tomista. E agarro então num texto de Zhao Tingyang: O novo ponto de partida da política imaginado pelo conceito de Tianxiá resume-se precisamente a construir o mundo como sujeito político passando pela sua inclusão, a estabelecer a soberania do mundo que pertence a todos, e a transformar o mundo da hostilidade para todos num Tianxiá de felicidade partilhada. A célebre expressão Tianxiá weigong (o Tianxiá pertence a todos) deve ser assim entendida: tudo o que se encontra debaixo do Céu deve ser usufruto comum de todos os que estão debaixo do Céu. 

 

   Creio que o problema - ou o dilema - da política externa norte-americana, desde o fim do "equilíbrio" bipolar que a Guerra Fria foi registando, se deverá, em grande parte, a um erro de perceção: não se ter visto que o desmoronamento do poder soviético, ou da alternativa comunista, longe de ser o fim da história ou o indiscutível triunfo da democracia liberal, nem sequer era o início de uma era nova de poder unipolar. Graham Allison vê bem quando afirma que o termo da Guerra Fria apenas produziu um momento unipolar. E desenvolve: Hoje, as elites da política externa despertaram para a subida meteórica de uma China autoritária, que agora rivaliza ou mesmo ultrapassa os Estados Unidos em muitos domínios, e para o regresso de uma afirmativa e iliberal superpotência nuclear russa, desejosa de pôr a sua força militar para mudar fronteiras na Europa e o equilíbrio de poderes no Médio Oriente. Devagarinho e penosamente, vão descobrindo que a parte de poder global dos EUA vai encolhendo. Quando medida pelo critério da paridade do poder de compra, a economia americana, que representava metade do produto mundial bruto após o fim da 2ªGuerra Mundial, caiu para menos de um quarto depois do fim da Guerra Fria, e é hoje apenas um sétimo.

 

   Mas a questão que esta abordagem da realidade adventícia levanta tanto pode ser, depois de verificados os fatores de uma perda de posição ou competitividade, saber, 1.- se se poderá reforçar uma primazia e hegemónica, 2.- ou se, melhor, nos deveremos todos adaptar à convivência num mundo menos desigual em poder, mais equitativo e mais justo. Sobretudo depois de se ter proclamado que as democracias sustentadas pela dita livre economia de mercado se deveriam implantar em toda a parte, de modo a cumprir-se a profecia dos que defendiam que "when a country reaches a certain level of economic development, when it has a middle class big enough to support a McDonald´s, it becomes a McDonald´s country, and people in McDonald´s countries don´t like to fight wars; they like to wait in line for burgers" - como sintetizava, no New York Times, em 1996, num artigo intitulado Golden Arches Theory of Conflict Prevention, Thomas Friedman. Há tiros que saem pela culatra, não é difícil perceber que a promoção da paz através de uma visão materialista do mundo e da vida e da instalação do consumismo, até poderá desvirtuar, para além de outros valores éticos, a própria razão de uma sociedade democrática. Na verdade, esta tem mais a ver com a liberdade interior, com a igualdade justa, com a fraternidade solidária. Pouco, ou nada, com a acumulação de riqueza ou o aumento do poder de compra. Como tanto tem lembrado, e sido bem escutado por variegadas gentes deste mundo, um argentino, filho de migrantes italianos, conhecido por Papa Francisco. A bom entendedor...

 

   A cultura reinante nas nossas democracias ocidentais é ainda fator de privilégio do indivíduo sobre o grupo, o êxito de um ser humano - em regra geral medido por vitórias e consagrado por remunerações - sendo sacramento de um novo messianismo que vai povoando de ídolos o imaginário coletivo: vai-se enchendo de "estrelas" e "melhores do mundo" a abóbada celeste da devoção dos homens comuns. Eis o culto da nova religião democrática animada pela ganância e pelo exibicionismo mediático. E a tentação de cada um se coçar para dentro, como os macacos (salvos sejam!), é tão grande que o conteúdo reivindicativo da esmagadora maioria das manifestações, greves e protestos sociais, quase sempre corporativos, se resume à reclamação de mais salários e melhores carreiras. Por vezes, chega a ser confrangedor ver como justos pedidos de justiça (apraz-me este pleonasmo de justiça justa) são confundidos em reclamações cegas a tudo o que não sejam ambições pessoais ou corporativas. Vamos perdendo referências a valores constitutivos da harmonia e progresso social, como a solidariedade e o sentido de missão. Ocorre-me aqui citar Xunzi, pensador confucionista do século III a.C.:

 

   O homem que vive tem desejos e, se estes não forem satisfeitos, subsistem as reclamações. Se as reclamações não forem limitadas, produzem-se conflitos. Os conflitos significam desordem, a desordem significa pobreza. O imperador detesta a desordem, e por isso instaurou ritos e etiquetas para assim estabelecer limites.

 

   Zhao Tingyang comenta: Xunzi verificou um fenómeno aparentemente paradoxal: a cooperação pode levar a conflitos pois gera muito mais vantagens, mas a resultante desigualdade de repartição pode conduzir ao conflito. Para que uma cooperação se torne estável e credível, é necessário institucionalizar os genes da cooperação.

 

   Eis, Princesa de mim, porque tenho dito e repetido, tantas vezes, que na raiz dos problemas sociais e políticos, nacionais e internacionais, está sempre uma questão de identidade e cultura. Para nos percebermos melhor, recorro ao pensarsentir a açorianidade ou a portugalidade, segundo Onésimo Almeida, açoriano no arquipélago, português no continente, europeu em Paris, universal em todo o mundo, um pouco como o padre António Vieira ao dizer: para nascer, pouca terra, Portugal; para morrer, o mundo inteiro. A identidade humana de cada um de nós vai-se engrandecendo com o crescimento da nossa compreensão dos outros (cultura) e o tamanho maior do nosso abraço. E o chamado Ocidente cristão deveria interrogar-se sobre como a sua dita democracia - ideia e projeto de cariz tão profundamente evangélico - se deixou transformar num veículo de egoísmos em competição.

 

Camilo Maria 

 

Camilo Martins de Oliveira