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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

   Sobre essa agitação francesa dos coletes amarelos, li uma entrevista estimulante de reflexões sobre movimentos sociais, dada por Christophe Gilluy, geógrafo, autor de um livro com certa fama popular (La France périphérique - Comment on a sacrifié les classes populaires, Champs, Flammarion, 2015) ao semanário La Vie, de 22 deste novembro. A lembrança de outros títulos do mesmo autor diz-nos bem o campo sobre que se vem debruçando: Fractures françaises (2013), Le Crépuscule de la France d´en haut (2016) ou ainda, já em setembro deste ano, No Society, uma análise que se estende às periferias norte americanas e britânicas e nos vai falando do apagamento das classes médias no Ocidente. E dos seus ressentimentos, como dos seus "cantos do cisne". Visita movimentos populistas (bonnets rouges, gilets jaunes e Le Pen, em França), o epifenómeno Trump, o confuso Brexit, e encontra-lhes um denominador comum: É a antiga classe média maioritária, correspondendo por via de consequência a uma geografia, a uma relegação para a periferia. E, hoje, toda a contestação, o famoso «voto populista», em França e alhures na Europa, provém dos territórios economicamente menos dinâmicos. Na ocorrência, das categorias populares - operários, empregados, independentes, etc. - , que já não se sentem integrados económica, política e culturalmente. Ao contrário do que dantes sucedia com a classe média. É consequência da recomposição económica dos territórios e, portanto, da metropolização e do modelo económico mundializado.

 

   Noutro passo da entrevista, Guilluy explica esse processo: Dantes, o facto de pertencer à classe média implicava a ideia de ascensão social para o próprio e seus filhos. Hoje, as lógicas económicas e imobiliárias fazem com que essas categorias sociais já não possam morar onde são criados empregos. O que nos conduz aos trabalhos do economista Thomas Piketty sobre a desigualdade no cerne do modelo económico hodierno. A isso chamo o grande choque cultural no Ocidente. Pela primeira vez na História, as categorias populares já não vivem onde se cria emprego.

 

   Repara, Princesa de mim, em que estas afirmações não são especulativas, nem sequer hipotéticas, mas resultam de trabalho no terreno geográfico e da observação sociológica das populações que o habitam. Tal realismo no estudo do que eu seria tentado a chamar sufocos sociais devia alertar-nos, quer para a gravidade crescente das situações criadas, quer para a necessidade de uma achega autenticamente democrática à edificação de sociedades político-económicas mais justas, mais equitativas, integradoras de todos em cidadanias portadoras de valores humanistas. O que mundialmente se vai apelidando de fenómeno populista é, na realidade, o quase desespero de povos órfãos, e o recurso emotivo a salvadores imaginários, onde se disfarçam os oportunistas prenunciadores do advento de ditaduras ou de catástrofes, mais provável sendo que tragam ambas. Aliás, mesmo antes desses aproveitadores, a indignação popular pode ser, e é, explorada por gente sem rumo e sem tino, grupúsculos de mentecaptos da raiva ou da embriaguez do protesto. Infelizmente, na voragem da atual "informação social" - mediática ou em rede - surgem sobretudo as imagens mais chocantes (as cenas de violência e vandalismo, o teatro "político"), para satisfazer o apetite delirante das turbas por "fitas" coloridas e barulhentas e "dramas sanguinários", em prejuízo da necessária, essa sim, observação e análise das ocorrências, com a consequente localização das suas motivações próximas e causas remotas. Basta pararmos um pouco e cuidarmos no que nos dizem estudiosos como Guilluy, para nos apercebermos de que os problemas que se têm agudizado são muito mais graves e complexos do que as suas manifestações. Não só resultam de processos iniciados há décadas e desenrolados por tempo suficientemente longo para já não termos bem presentes algumas das suas circunstâncias e condicionantes, como nem sempre será fácil, ou cómodo, precisar quem foram os seus agentes principais, e muito menos identificá-los...

 

   [Permite-me ainda, Princesa de mim, este curto parêntese que, todavia, reputo importante para uma reflexão mais longa acerca das circunstâncias e consequências dos movimentos de massas solicitados e motivados sobretudo através de redes sociais, isto é, sem notoriedade dos seus promotores, mas certamente reunindo descontentamentos, ressentimentos e reivindicações comuns a muita gente. Imaginemos, por exemplo, que a subida das taxas de certos impostos não visa apenas nem prioritariamente o aumento de receitas fiscais (apesar do equilíbrio ou superavit orçamental estar nas ordens dos dias), mas procura atingir objetivos de outra ordem: redução do consumo de combustíveis como combate à poluição, ou do de sal ou açúcar por razões sanitárias, etc. A dificuldade de assim se justificarem essas medidas de política encontra-se, não só na falta de informação adequada, como sobretudo na cultura popular que, ao longo de décadas, foi sendo educada no sentido de uma sociedade de consumo e na perspetiva de que o crescimento económico iria abundantemente servir-lhe os produtos desejados e os meios de os adquirir. E talvez mais ainda no sentimento generalizado de que há classes ou categorias sociais privilegiadas, que escapam ou estão isentas dos custos e das consequências penalizadoras das medidas ditas reformadoras, como se fossem irresponsabilizáveis.] 

 

   O geógrafo que te tenho referido, Princesa de mim, cita aquele dito de Emmanuel Macron aos microfones da TF1, no dia 15 deste novembro: Não consegui reconciliar o povo francês com os seus dirigentes. E aproveita tal dica para acrescentar: Como explico no meu último livro [No Society], pela primeira vez temos um mundo de cima (d´en haut) - ou todas as categorias [classes] superiores - de costas voltadas para o conjunto das categorias [classes] populares, antigamente classes médias. E temos um mundo de baixo (d´en bas) que já não ouve o mundo de cima, seja este o político, o mediático ou o cultural. A isso chamo «o movimento real da sociedade». E tal «movimento real» dá poder de influência às classes populares. Os populistas bem o perceberam, já que se apoiam nessa força. Os dirigentes políticos franceses devem ligar-se, eles também, a esse movimento. Há um enorme problema de oferta política. Mas creio que o mundo político acabará por se adaptar, porque vivemos em democracia...

 

   Estou mais tentado a dizer «Deus o ouça!», do que a subscrever esta última afirmação de Christophe Guilluy. Não tanto por desacordo, visto tratar-se de uma hipótese. Mas, quiçá, porque o meu pensarsentir antes deambula por outras questões, mais atinentes à cultura popular e à que rege grande parte dos comportamentos e ações dos agentes do poder, seja ele político ou mediático. E, sendo cidadão português, também entendo que deverei abordar tais questões na perspetiva da incidência que têm na vida lusitana. Embora depare, à partida, com uma desvantagem minha: como não sou geógrafo nem sociólogo, não fiz, eu próprio, qualquer trabalho de campo nesta área; e tampouco disponho de dados ou estudos analíticos que sustenham a exposição dos meus pontos de vista. Assim, a seu tempo direi como pensossinto alguns aspetos da nossa realidade nacional que, dia a dia, vou empiricamente observando -  e na qual vou vivendo sem razão maior de queixa, ainda que com muitos motivos de resmunguice e alguns de escândalo. Aliás, em cartas anteriores, Princesa de mim, já te fui deixando algumas (in)confidências...

 

   Por agora, só para nos estimular uma reflexão mais global sobre o estado atual das "coisas", entrego-te umas referências interessantes:

 

   1. Kate Raworth, investigadora nas universidades de Oxford e Cambridge, publicou um "Sunday Times Best Seller", recentemente traduzido para outras línguas, entre as quais a portuguesa, intitulado Doughnut Economics: Seven Ways to Think Like a 21st-Century Economist. Aconselho-te a edição inglesa, não só por ser a original, mas por custar o terço do que pagarias por uma tradução. A confessa intenção da autora é levar-nos a entender que vivemos uma época formidável para desaprendermos e reaprendermos as bases da economia. Fala-nos do abismo que separa as preocupações da teoria económica convencional das crises cada vez mais graves do mundo real, tais como a desigualdade planetária e as mudanças climáticas...   ... A humanidade está confrontada com enormes desafios, e é em grande parte graças às omissões e às metáforas erradas duma reflexão económica ultrapassada que aí chegámos. Mas para aqueles que estão prontos a rebelar-se, a olhar em volta, a contestar e a repensar, a época é entusiasmante. «É preciso que os estudantes aprendam a desembaraçar-se das ideias desmodadas e saibam quando e como substituí-las... como aprender, desaprender e reaprender», escrevia o futurólogo Alvin Toffler. Nada de mais verdadeiro para aqueles que procuram o conhecimento económico. Sabes bem, Princesa de mim, tal como muitos amigos meus, como eu incessantemente batia na mesma tecla, quando discutíamos a vinda da Troika e o problema das dívidas ditas soberanas... E não nos esqueçamos de que crises e sufocos nacionais que se distribuem pelo planeta já não nos são questões alheias: basta olharmos para as torrentes de massas migratórias, como também, ainda que diferentes, para as movimentações terroristas. Desde vitimizações sentidas, por discriminação económica ou jurídica, a ressentimentos, históricos ou atuais, por exploração colonialista ou opressão étnica, "religiosa" ou cultural, sem esquecer a força tentacular de agentes económicos e financeiros, são múltiplas as razões das ameaças que hoje perturbam as nossas classes médias em vias de extinção, cuja força política vai diminuindo na medida do enfraquecimento democrático das nossas sociedades. E é tão forte o sentimento de injustiça dessas populações, que se vão progressivamente agarrando, não ao regime político que já não as serve, mas à "Autoridade" que ponha tudo na ordem desejada.

 

   2. Por outro lado, economistas (e não só) vão-se dando conta de que a expansão económica já não reduz as desigualdades, mas aumenta o aquecimento global, e assim surge, uma vez mais, o debate acerca do pós-crescimento. Eis porque, no seu suplemento Économie & Entreprise, o jornal Le Monde iniciou, a 30 deste novembro, um dossiê sobre o tema Crescimento contra Decrescimento, cujo primeiro artigo se intitula O Crescimento, uma Velha Lua para esquecer? Ainda hoje guardo, na minha biblioteca, um exemplar, em francês, do relatório Meadows para o Clube de Roma, apelando à moderação do crescimento económico e intitulado Les Limites de la Croissance (1972), trabalho sobre o qual fiz algumas palestras em cursos organizados pelo IAG (Institut d´Administration et Gestion) da Université Catholique de Louvain. A questão de fundo era a de saber se e como seria possível compatibilizar um infinito crescimento económico com os limitados recursos naturais disponíveis neste mundo... O artigo de Le Monde, assinado por Frédéric Cazenave e Marie Charrel, faz o comentário seguinte, que, quase meio século depois, com simpatia me divertiu: Aqueles que se mostram sensíveis a essas ideias, agruparam-se, nos anos 2000, sob a bandeira «decrescimento», assente numa crítica da sociedade de consumo e do liberalismo. Formam hoje uma corrente atravessada por várias escolas teóricas e umas capelas, nem sempre fáceis de circunscrever. Na Europa, nos Estados Unidos, uma ladainha de coletivos cogita igualmente sobre o assunto. «O decrescimento é um conceito guarda-chuva, simultaneamente político, económico e social, e agrupa várias ideias mais ou menos ridículas», explica Giorgos Kallis, economista especializado em ecologia na Universidade Autónoma de Barcelona. Mas, afinal, desde adeptos do "crescimento verde" e do "desenvolvimento sustentável" aos que insistem no malthusianismo, todos parecem concordar num ponto, que o artigo aponta: a crítica do produto interior bruto (PIB), que hoje está no cerne das nossas políticas públicas, como critério primeiro do desenvolvimento económico e social.

 

   É verdade que no pós-guerra, e até aos anos 1980, o crescimento económico se traduzia mecanicamente por um aumento do bem estar, tanto nos países industrializados como nos emergentes. «Mas, desde então, essa relação já não é evidente», sublinha Tim Jackson, professor de desenvolvimento sustentável na universidade britânica de Surrey. Primeiro, porque a atividade industrial gera uma poluição que degrada cada vez mais a qualidade de vida. Além disso, uma parte do crescimento é doravante arrastada pelas despesas ligadas aos problemas gerados pelo desregulamento climático - secas, inundações, subida das águas... Finalmente, os frutos desse crescimento são cada vez menos bem repartidos entre as classes sociais. «O crescimento, não só deteriora as condições de vida na terra, mas já não permite reduzir as desigualdades e favorecer o bem estar», resume Dominique Bourg, filósofo na Universidade de Lausanne

 

   3. O já famoso sociólogo alemão Michael Hartmann publica este ano mais um livro sobre "os desconectados", as elites desligadas das gentes: Die Abgehobenen: Wie die Eliten die Demokratie gefährden (Campus, 2018). Aí vou buscar mais umas achas para a nossa reflexão de hoje: As elites na Alemanha, mas também noutros países, já não sabem o que possa ser a vida da maioria da população: muitos dos seus membros vivem em bairros homogéneos. Têm um quotidiano diferente, outros lazeres, outras oportunidades. E, referindo-se a Joe Kaeser, o PDG da Siemens, cujo salário horário atinge os 3 mil e 500 euros, e que aconselhou os pobres a comprarem ações para se enriquecerem, comenta: É evidente que Kaeser nem consegue imaginar a existência de pessoas que nem sequer têm dinheiro suficiente para poder poupar pelo menos um bocadinho... Por muito bem intencionado que seja, e desejoso de proceder a reformas da sociedade francesa, Macron não consegue escapar à acusação generalizada de que está com os ricos -  e não ao lado dos pobres. Porque, mais alto do que qualquer apelo ao diálogo e à busca de soluções acordadas no presente e projetadas para o futuro, soa o grito de raiva pelo engano sofrido de classes sociais que - no cotejo com os privilegiados, hoje inevitável - se sentem abandonadas pelo poder político que julgavam potencialmente mais atuante em democracia. Donde também este mal estar que, nos dias que correm, connosco habita os nossos Estados de Direito pouco democrático...

 

   Verifico que, em Portugal, quiçá pela sua tradição estatal e centralista, as manifestações reivindicativas de direitos sociais surgem sobretudo de corporações sectoriais ou profissionais vinculadas ao serviço público ou ao aparelho do Estado: transportes públicos, professores e auxiliares, médicos e enfermeiros, bombeiros e forças de segurança,magistrados... Todos sectores de atividade que, deste ou daquele modo, com mais ou menos força, sempre podem afetar interesses vitais ou fatores essenciais ao bom funcionamento do corpo social. É assim aparente mais uma discriminação, entre cidadãos melhor ou pior protegidos, sobretudo num país onde o recurso ao Estado-Solução é sempre insinuante...

 

   Para terminar esta carta, aproveito a ideia de já não ser evidente que o crescimento económico seja, só por si, fator de desenvolvimento social e político (conceito, aliás, bem subjacente ao sonho do fim da História, de Francis Fukuyama) para referir a resposta de Carlos Gaspar, em entrevista ao jornal Público, a uma pergunta sobre se, no Ocidente, se acreditava em que a abertura económica seria acompanhada de uma abertura política na China: Existia essa ilusão. Os liberais norte-americanos defenderam, com o seu otimismo histórico e incorrigível, que a abertura económica e a ascensão de uma classe média, urbana, com dezenas de milhares de estudantes nas universidades, levariam naturalmente a que, a partir de um certo nível de desenvolvimento económico e social, as classes urbanas iriam querer instalar um Estado de direito e um regime de democracia pluralista. Não tinham razão.

 

   Falar-te-ei do Portugal-China em carta futura. Retomando temas que já tinha abordado em cartas mais antigas. Sobre o conceito de Tianxiá e as tempestades e/ou bonanças que poderão, ou não, surpreender-nos.   

 

Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira