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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

   Chamou-me há dias a atenção o título de uma crónica de Ana Ruepp no blogue do Centro Nacional de Cultura: A cidade segundo George Perec. Assim mesmo, George escrito à inglesa, e não Georges à francesa. No texto, todavia, a ortografia do nome do escritor francês está correta, ainda que as citações de passos da sua obra, nesse caso do ensaio Espèces d´Espaces (ou Spaces Species na tradução inglesa da Penguin) sejam todas reproduzidas da versão anglo-saxónica, e sem tradução para português. Estranhei o facto, até porque Georges Perec apenas publicou um ensaio, esse mesmo, sendo o resto da sua obra livresca publicada em vida constituída por seis romances (alguns bem longos), mais dois livros de poesia, dois autobiográficos, e duas peças de teatro. Nascido em Paris, em 1936, de pais judeus polacos imigrados em França e vítimas da guerra e da ocupação nazi logo no início dos anos 40. Será admitido no CNRS (Centre National de la Recherche Scientifique) em 1961, como documentalista no laboratório de neurofisiologia médica, que deixará em 1978 para se tornar exclusivamente um homem de letras. Nesse ano, quatro antes de morrer de cancro no pulmão (1982), publica La Vie mode d´emploi, romance originalíssimo, que lhe valeu ser entrevistado por Jean-Louis Ézine para o Magazine Littéraire:

 

   - V. é o acrobata da literatura contemporânea...  ...faz proezas, mas será romancista? - Quero ser!

 

   Na verdade, se, além do volume e da importância do género romance no conjunto da sua obra, considerarmos que os dois maiores prémios literários que recebeu foram atribuídos a romances seus (o Renaudot a Les Choses e o Médicis a La Vie mode d´emploi), ou ainda o que, afinal, ele próprio pretende dizer de si numa conferência proferida na Universidade de Warwick, que intitulou Pouvoir et limites du romancier français contemporain, é indiscutível que ele se reconhecia na vontade e na realidade da sua condição de romancista. Mesmo apesar da versatilidade da sua obra (Bernard Magné diz bem: Ses romans se suivent sans se ressembler - os seus romances sucedem-se sem se parecerem), ou da sua desconcertante originalidade, que torna impossível classifica-lo em qualquer "escola" ou "estilo". Quando lemos Perec, espanta-nos a extensão da sua erudição por diversíssimos campos, e o trabalho da sua cultura, infatigável na procura e consideração de coisas e conceitos, capaz ainda de criar e prover uma artesania do real e do imaginário. Mutatis mutandis - desculpa-me a ousadia, Princesa de mim, mas se fores psicanalista de textos talvez me entendas - ao ler as seis centenas e meia (?) de páginas de La Ve mode d´emploi, muitas vezes visualmente me ocorre a Sagrada Família de Barcelona, do "ourives" Gaudi.

 

   Magné, responsável pela edição e apresentação da coleção dos seis romances publicados em vida do autor e mais dois póstumos (La Pochotèque, 2004), observa como aquele «romancista francês contemporâneo», surpreendente pela sua versatilidade, gabando-se de «nunca ter escrito dois livros semelhantes», só poderá, evidentemente, oferecer aos seus leitores romances díspares, passando, em quatro anos, da pintura flaubertiana de uma geração (Les Choses, uma história dos anos 60) à narrativa burlesca de Quel petit vélo à guidon chromé au fond de la cour? (1966), cujo título constitui, por si só, uma provocação, voltando depois a ser sério, regressando a Proust e ao Bartleby de Melville para escrever o seu terceiro romance Un homme qui dort (1967), antes de redigir um romance inteiro sem E: La Disparition (1969). E será, Princesa de mim, tal ausência de letras E em todo o texto, sinal, estigma ou sacramento de O Desaparecimento?

 

   Mas parece-me acertado perceber, subjacente à sua incessante busca de originalidade e surpresa - e por paradoxal que este reparo surja -, uma intenção de realismo, no sentido em que Lukács significava o realismo crítico: O realismo não é um estilo entre muitos outros, mas a própria base de toda a literatura. Pensamento e sentida inspiração que Perec retoma ao dizer do realismo: Não se trata de uma escola, de uma técnica, de uma tradição: a função da literatura é ser realista. Ou ainda: A primeira exigência do realismo é a vontade de totalidade.

 

   Tal intuição e procura da realidade escondida e fecundante das coisas será, talvez, o início propulsor de uma visão quase inversora da ordem de tudo o que vemos e julgamos conhecer. Nesse sentido, Espèces d´espaces talvez não seja, de facto, propriamente um ensaio sobre a plasticidade, a ocupação ou a construção do espaço, nem do seu desenho ou arquitetura, mas muito mais um exercício de entendimento dos espaços como apenas função da presença humana que os habita. Assim, são certeiramente reveladoras do olhar pereciano as citações que dele faz Ana Ruepp, por exemplo: Não há nada desumano numa cidade, a não ser a nossa própria humanidade...   ... Gosto da minha cidade, mas não sei dizer exatamente de que é que gosto nela. A ilustração dos espaços desenhados pela íntima habitação deles pelos humanos é, afinal, o "enredo" dos romances de La Vie mode d´emploi, que mais não são do que narrativas curtas e incisivas de momentos ou segmentos de vidas, gestos e memórias dos moradores e ex-moradores dum edifício de apartamentos em Paris, todos estes, aliás, identificados pelos nomes dos seus ocupantes, quer nos subtítulos dos capítulos respetivos, quer numa "planta" vertical do próprio edifício. E, definitivamente, se as escadas do prédio, cujo elevador está quase sempre avariado, são caminho de encontros e intercâmbios, mesmo essas são habitadas, animadas, por gente: Nas escadas passam as sombras furtivas de todos os que um dia lá estiveram (Capítulo XVII, Dans l´escalier, 2). E as sucessivas visitas que o leitor vai fazendo por todo o edifício são como um percurso de diaporamas, em que as pessoas e a disposição, formas e cores, dos espaços e objetos são histórias ilustradas. Até lá poderia estar a Casa da Mariquinhas, do Alfredo Marceneiro. [ai vê-la ao Museu do Fado, é lá que está, não é?]. As salas e quartos podem estar desertos de gentes, os móveis e coisas várias dizem-nos quem elas são. Textos inteiros só nos descrevem objetos em espaços que foram ou são habitados, simples inertes testemunhos de presenças vivas: Será algo como uma lembrança petrificada - escreve Perec - como um desses quadros de Magritte em que não sabemos muito bem se a pedra se tornou viva ou se a vida se mumificou, algo como uma imagem fixada uma vez por todas, indelével...

 

   O texto de La Vie mode d´emploi é fracionado, como um puzzle, em minúsculos capítulos e subcapítulos, e o próprio subtítulo da capa do livro indica que não se trata de um romance, mas de romances: La Vie mode d´emploi - Romans. O capítulo I subintitula-se Dans l´escalier (Nas escadas), sendo que tal intitulação se repetirá em vários capítulos seguintes: o espaço é parte integrante das personagens, como se estas o definissem sem lhe dar identidade própria. As escadas comuns são o acesso de todos e cada um ao seu próprio espaço, assim têm os espaços espécies. E assim começa esse capítulo I(traduzo):

 

   Sim, isso poderia começar assim, aqui mesmo, desta maneira um pouco pesada e lenta, neste local neutro que é de todos e de ninguém, onde as pessoas se cruzam sem quase se verem, onde a vida do imóvel se repercute, longínqua e regular. Do que se passa por detrás das pesadas portas dos apartamentos, quase sempre só percebemos ecos afastados, esses pedaços, esses restos. esses esboços, esses começos, esses incidentes ou acidentes que se desenrolam no que chamamos as «partes comuns». esses barulhinhos filtrados que o tapete de lã vermelha abafa, esses embriões de vida comunitária que nunca passam dos patamares. Os habitantes dum mesmo imóvel vivem a poucos centímetros uns dos outros, uma mera divisória os separa, partilham os mesmos espaços que se repetem ao longo dos andares, fazem os mesmos gestos ao mesmo tempo, abrir a torneira, puxar o autoclismo, acender a luz, pôr a mesa, algumas dezenas de existências simultâneas que se repetem de andar em andar, e de imóvel em imóvel, e de rua em rua.

 

   No fundo, fica por descobrir a arquitetura comum, o enigma (puzzle, em inglês) do ser urbano. No preambulo do livro de que falamos, Princesa de mim, Georges Perec cita Paul Klee (cf. Pädagogisches Skizzenbuch): O olhar segue os caminhos que a obra lhe preparou. E analisa então o seu conceito do puzzle como lição sobre a perceção do real e do seu espaço:

 

   À partida, a arte do puzzle parece uma arte breve, uma arte esguia, cabendo inteirinha num magro ensinamento da Gestalttheorie (teoria da forma): o objeto visado  -  quer se trate de um ato percetivo, duma aprendizagem, dum sistema fisiológico ou, no caso presente, dum puzzle de madeira  -  não é uma soma de elementos que se deveriam isolar e analisar primeiro, mas um conjunto, isto é, uma forma, uma estrutura : o elemento não é preexistente ao conjunto, nem mais imediato nem mais antigo, não são os elementos que determinam o conjunto, mas o conjunto que determina os elementos : o conhecimento do todo e das suas leis, do conjunto e da sua estrutura, não poderá ser deduzido do conhecimento separado das partes que o compõem : quer isso dizer que podemos olhar para uma peça de puzzle durante três dias e julgar tudo saber da sua configuração e da sua cor sem termos avançado sequer um pouquinho : apenas conta a possibilidade de ligar essa peça a outras peças, e nesse sentido há algo de comum entre a arte do puzzle e a arte do gô; só as pedras reunidas ganharão um carácter legível, ganharão sentido: considerada isoladamente uma peça dum puzzle não quer dizer nada ; é somente uma questão impossível, desafio opaco ; mas logo que tivermos conseguido, ao fim de vários minutos de ensaios e erros, ou em meio segundo prodigiosamente inspirado, a conectá-la com uma das suas vizinhas, eis que a peça deixa de existir enquanto peça : a intensa dificuldade que precedeu essa aproximação, não só já não tem razão de existir, mas até parece nunca a ter tido, a tal ponto se tornou evidência : as duas peças milagrosamente reunidas mais não são do que uma só, por sua vez fonte de erro, de hesitação, de desapontamento e de expectativa.

 

   Tenho os Romans § Récits de Georges Perec entre os livros vários que me tentam, e me desafiam o sono, à cabeceira da cama. Nesta viragem de um algarismo da data anual (de 8 para 9), longe da estridência das cidades, encontrei neles o meu espaço interior, como voz clamando no silêncio dos campos. Mais do que levar-me a refletir sobre as efemérides do ano terminado - e ano em que me foram morrendo tantos amigos de décadas - este estado de mediatização entre o passado e o interrogado, o visto, o entrevisto e o invisível, prende-me à meditação de Valène, o mais antigo locatário desse edifício de apartamentos no XVIIème de Paris:

 

   Valène, por vezes, tinha a impressão de que o tempo se tinha quedado, suspenso, imóvel em redor de uma espera que ele desconhecia. A própria ideia daquele quadro que ele projetava fazer e cujas imagens expostas, explodidas, tinham começado a assombrar todos os seus instantes, mobilando os seus sonhos, forçando as suas lembranças, a própria ideia desse imóvel esventrado pondo a nu as rachas do seu passado, o desmoronamento do seu presente, esse amontoamento sem continuação de histórias grandiosas ou irrisórias, frívolas ou lamentáveis, faziam-lhe o efeito de um mausoléu grotesco levantado à memória de comparsas petrificados em posturas derradeiras tão insignificantes na solenidade como na banalidade, como se ele tivesse querido simultaneamente prevenir e atrasar essas mortes lentas ou vivas que, de piso para piso, pareciam querer invadir a casa inteira.

 

   Georges Perec bem sente e sabe que, se o passamento dos humanos pelo espaço-tempo neste sempre deixa o rasto dessa passagem, indelevelmente também o marca como efémero: Um dia sobretudo, será a casa inteira a desaparecer, e morrerão aquela rua e o bairro inteiro. Levará tempo. Ao princípio, parecerá uma lenda, um rumor apenas plausível: teremos ouvido falar duma extensão possível do parque Monceau, ou dum projeto de grande hotel, ou duma ligação direta entre o Eliseu e Roissy que tomará para ir ter ao periférico o trajeto da avenida de Courcelles. Depois, serão mais precisos os boatos; dir-nos-ão o nome dos promotores e a natureza exata das suas ambições, que luxuosas brochuras em quadricromia virão ilustrar...

 

   ... Mas antes que do solo surjam esses cubos de vidro, de aço e de betão, haverá o longo apalavrar das vendas e das retomas, das indemnizações, das permutas, dos realojamentos, das expulsões. Uma após uma, serão encerradas as lojas, e não serão trespassadas, uma a uma serão muradas as janelas dos apartamentos devolutos, e arrombados os seus soalhos para desencorajar aproveitadores e sem-abrigo. A rua mais não será do que uma sequência de fachadas cegas - janelas semelhantes a olhos sem pensamento - alternando com paliçadas maculadas de cartazes e grafiti nostálgicos...

 

   ... Quem é que, diante dum imóvel parisiense, nunca pensou que ele era indestrutível? Uma bomba, um incêndio, um tremor de terra poderão certamente derrubá-lo, mas se assim não for? Comparado a um indivíduo, uma família, ou mesmo uma dinastia, parecem inalteráveis uma cidade, uma rua, uma casa, inacessíveis ao tempo, aos acidentes da vida humana, a tal ponto que cremos poder confrontar e opor a fragilidade da nossa condição à invulnerabilidade da pedra. Mas a mesma febre que, por volta de 1850, nas Batignolles como em Clichy, em Ménilmontant como na Butte-aux-Cailles, em Balard como no Pré Saint-Gervais, fez surgir da terra estes edifícios, esganar-se-á doravante a destruí-los...

 

   ... Os bulldozers infatigáveis dos niveladores virão levar os restos: toneladas e mais toneladas de detritos e de poeiras. 

 

   E mais te digo, Princesa de mim: quem se lembrará hoje de que o Arco do Triunfo, em Paris, foi levantado no campo? ou quantos se avisarão de olhar para as matrículas dos autocarros para saber se estão nessa cidade? Retomo afinal, nestas duas interrogações, mais duas citações de Georges Perec feitas na tradução inglesa utilizada pelo artigo referido no início desta carta. E revejo-me em Paris - onde hoje vivem filha, genro e três netos -, cidade entre outras a que pertenço, porque qualquer ser humano guarda sempre um pouco, ou muito, dos espaços que habitou.

 

Camilo Maria

  
Camilo Martins de Oliveira

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