CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA
Minha Princesa de mim:
Já que teimei em voltar a escutar o concerto em ré menor, para piano e orquestra, de Johann Brahms, ouvindo ainda o "prelúdio" verbal de Leonard Bernstein - que dirigia a Filarmónica de Nova Iorque e o solista Glenn Gould -, tal como te contei em carta anterior, deixa-me traduzir-te uns trechos da conversa entre Seiji Ozawa e Haruki Murakami sobre a audição que, eles também, fizeram deste registo. Não o fiz na outra carta, para deixar-te só com as palavras de Bernstein e o meu sentimento. Para começar, o romancista e melómano Murakami comenta, pouco depois da música começar, que tudo aquilo lhe parece muito lento, tão surpreendentemente lento que talvez justifique a prévia advertência de Bernstein. Ao que o maestro Ozawa retorque: É evidente que este trecho é tocado de acordo com um ritmo binário amplo, dois tempos que se decompõem assim: um dois três, quatro cinco seis. Lenny dirige-o como se houvesse seis, porque um simples ritmo binário seria demasiado lento para manter um intervalo consistente entre as batidas. Não tem opção. Em geral, antes será um e e, dois e e, dirigido um...dois... É claro que há uma data de maneiras de o fazer, mas acontece que quase todos os maestros o fazem assim. Aqui, com um tempo tão lento, repito, Bernstein não podia manter um intervalo consistente entre as batidas, e por isso se viu obrigado a dirigir em: um dois três, quatro cinco seis. Eis por que falta fluidez à orquestra e ela se atola.
E eis que então, nesta conversa - quiçá como sinal de que um grande músico está sempre atento , e aberto, não só à escrita original da música, mas também à recriação que, vez após vez, a faz acontecer - quando Murakami lhe aponta, logo à entrada do piano, que este também vai lento, Ozawa responde: Sim, mas tal parece-me bastante aceitável, sobretudo quando nunca se ouviu este trecho noutra versão. Temos a impressão de que foi escrito assim. Dir-se-ia quase uma ária bucólica, tocada com grande descontração... ... Escute bem: quando chegamos a esse passo é impossível não nos encantarmos...
Atrevo-me a dizer-te que a avaliação global deste registo do concerto de Brahms - por Ozawa e Murakami - não busca ser abonatória, provavelmente pela cedência de Bernstein à imposição de Gould... E, como admirador, discípulo e assistente de Lenny, que o maestro japonês sempre foi, até lhe custou discordar daquela iniciativa do mestre se explicar à plateia antes do concerto. Todavia, tem plena consciência de que, se Bernstein tivesse tomado a outra opção, isto é, a de encarregar um assistente de o substituir na altura, o escolhido seria forçosamente ele próprio, Seiji. Susto enorme, que até em sonhos o assombra... Mas a amizade verdadeira é fiel, não se deixa ressentir com faltas ou mesmo pequenos defeitos daqueles a quem bem queremos. O que não impedirá Ozawa - pois que a amizade também deve ser lúcida - de estabelecer outra comparação: a dessa interpretação de Bernstein com Gould com uma deste mesmo pianista canadiano com a Cleveland Orchestra, dirigida por um assistente de George Szell, pois este se recusara a seguir os tempi queridos pelo solista. Traduzo-te o trecho dos comentários durante a audição do solo para piano do primeiro andamento do concerto:
Ozawa - É surpreendentemente lento, mas contudo, assim tocado por Gould, funciona. Não ficamos com a impressão de que o tempo está errado.
Murakami - Ele devia ter um sentido muito afinado do ritmo. Isto é, era capaz de manter um tempo tão espreguiçado e simultaneamente inserir o som do piano na estrutura da orquestra...
Ozawa - Tinha uma compreensão do fluxo musical à prova de bala. E, por outro lado, o Lenny tinha razão ao dizer que ele se atirava de corpo e alma...
Como terás percebido, Princesa de mim, delicio-me com estas conversas entre músicos e melómanos [alguns fãs quiçá não possam ler uma partitura, mas talvez utopicamente a saibam de ouvido e de cor(ação)]. Confirmam-me, como crisma na fé, que o universo da música é o do tempo de encontros inesperados com uma revelação sempre irrepetível no mesmo modo...
Acontecimento, eis tudo o que ela é, entrega de um inexplicável de nós a um momento de sons que nos cativam. Assim também entendo os títulos de livros de Vladimir Jankélévitch: L´Enchantement Musical (o encantamento ou feitiço musical), La Musique et l´Inneffable (a música e o inefável), Debussy et le Mystère de l´Instant (Debussy e o mistério do instante). E creio que cada instante é a chave da escuta musical. Por isso me retiro agora mesmo da escrita desta carta, e não ouvirei mais música hoje. Amanhã, esteja cinzento e chuvoso o dia, ou radioso de sol já primaveril, sozinho novamente escutarei o concerto em ré menor de Brahms, para piano e orquestra, interpretado por Bernstein, com a Sinfónica de Nova Iorque, e por Glenn Gould. Sem me lembrar já dos comentários que aqui te traduzi, nem de emoções das minhas audições passadas. Mas tão somente, porque nunca pude evitá-lo, com o sentimento de gratidão por uma partilha procurada. Por quem dá e quem recebe. "Ortodoxos","puristas", "fundamentalistas" poderão julgar de outro modo, mas eu pensossinto que as vidas e seus dons, sejam reflexão profunda ou audácia liberta, entregam-se-nos, não para serem julgados, mas para que partilhemos um novo salto, um passo, um encanto, uma interrogação. No caso presente, sou comovido pela coragem fraterna e humana de dois intérpretes (um grande maestro e um pianista genial) que aceitaram revelar-se publicamente na simultaneidade das suas ideias divergentes, das suas respetivas imperfeições mas, sobretudo, no esforço passional de busca da compreensão de uma oferta de música escrita pelo alemão Johannes Brahms um século antes, quiçá sob o desgosto da morte trágica do seu amigo Robert Schumann.
Camilo Maria
Camilo Martins de Oliveira