CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA
Minha Princesa de mim:
Chove, é cinzenta e sombria a manhã, mas ocorre-me que Brahms, em alemão, quer dizer giesta, esse arbusto de flores brilhantemente amarelas que nos alegra os campos, e deixo que a música do concerto em ré menor de Johannes Brahms, para piano e orquestra, continue a tratar de mim. Lentamente, muito de mansinho, refletidamente, pensandossentindo. Como se fosse tocada no meu universo interior. No final, apesar deste ser um Rondo, Allegro non troppo, nada me impele ao aplauso, a qualquer manifestação. Toda a música tem os seus espaço-tempo de silêncio. Por vezes, no final de uma audição, o silêncio manda ainda mais, ficou-nos cá dentro, em nós edificou uma casa onde habita aquela música. Como se construísse um amor mais íntimo. Lembro-me desse verso do David Mourão-Ferreira que a grande Amália canta com música de Alain Oulman: Vou recolher à casa onde nasci, por teus dedos de sombra edificada... E recordo ainda os versos com que Goethe abre o seu Divã Oriental, e José Bruyr a sua biografia de Brahms na Solfèges (Seuil, Paris, 1965): Wenn der Dichter will verstehen, muss in Dichters Land gehen. Quando se quer compreender o poeta, tem de se ir à terra dele.
Passou uma hora sobre esse recolhimento. Volto à carta, porque, entre as diferentes interpretações desse concerto que aqui tenho, encontro uma que talvez deixe o Glenn Gould mais acompanhado por outro oficiante do mesmo rito: trata-se da de Claudio Arrau, chileno, nascido em 1903, em Chillán, falecido em 1991, em Mürzzuschlag, na Áustria. A sua reputada virtuosidade em nada diminui a profundidade intelectual e espiritual que procura encontrar naquilo que toca. Nesse sentido, e para melhor compreendermos o que ficou dito nas minhas cartas anteriores sobre o entendimento do concerto de Brahms, traduzo-te um texto de John Clark, acerca das Conversations with Arrau, de Joseph Horowitz, sobre as inúmeras controvérsias que o pianista, ao longo da sua carreira internacional, teve com múltiplos maestros, precisamente por causa deste "nosso" 1º concerto:
No caso do primeiro concerto, Arrau torna-se inesperadamente dogmático, insistindo em que há apenas uma maneira de interpretar os dois primeiros andamentos. O primeiro andamento é Maestoso, não Allegro. Executá-lo pela batida 6/4 em seis tempos é a única maneira de criar «a qualidade trágica, a grandeza, a profundidade» que o pianista vê na partitura. O segundo andamento, Adagio, também em 6/4, deve ser muito lento, tanto mais quanto Arrau o concebe como reflexo da tragédia dos Schumann: a morte de Robert, a aflição de Clara. As tónicas religiosas conotam também o segundo andamento e Brahms até teria escrito no manuscrito as seguintes palavras: Benedictus qui venit in nomine domini. Imaginemos o tanto que Arrau se comoveu com estas palavras da missa. Ao escutá-lo, não nos podemos impedir de sentir a extraordinária profundidade da sua resposta à dor. A execução do concerto em ré menor de Brahms representa uma das obras primas do vasto repertório pianístico de Claudio Arrau.
O registo que agora começo a escutar é de outubro de 1969, com a Royal Concertgebow Orchestra, de e em Amsterdam,sob a direcção de Bernard Haitink. O som é menos americano, diria eu: tem o feitiço de uma tranquilidade submarina. Lindíssimo e, como Arrau queria, profundamente comovente. Fecho os olhos e deixo que a música venha morar no meu íntimo silêncio.
Camilo Maria
Camilo Martins de Oliveira