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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS DE CAMILO MARIA, MARQUÊS DE SAROLEA

A Ceia de Emaus de Caravaggio.JPG

 A Ceia de Emaus de Caravaggio

Minha Princesa de mim: 

Escrevo-te mais uma carta póstuma. E é póstuma mesmo, posto que a não deixei aí, na tua caixa do correio, nem sequer nas mãos de algum grumete que a levasse. Vai ela desde aqui, que não é sítio, nem de cima nem de baixo, nem tem data de antes, agora ou depois. Segue simplesmente uma carta, inspirada por esse afago sem tempo nem espaço, o tal que começa por onde todos passamos, e não termina. Há coisas que só Deus sabe. Dos sofrimentos e alegrias que passei, não fica dor, nem gáudio, nem paixão qualquer, nem sequer lembrança... A eternidade não é contínua, não tem duração. É simplesmente ser. Talvez por isso nos convencemos de que Deus é amor. Como mão que demos e nunca foi largada. Morto, não valho mais, nem menos. Tampouco existo, existir é só o modo episódico da essência. A essência, sabes bem, é a substância - se assim me posso exprimir - de essere, ou do sermos, tranquilamente. Não tem esquecimento nem recordação, não se angustia nem agita, não cala nem exclama. Permanece. Quando saduceus perguntaram a Jesus quem seria, na ressurreição da vida eterna, o marido da mulher que, de acordo com a lei hebraica, por viuvez casara com sete irmãos, esse Mestre respondeu : aqueles que forem dignos de tomar parte na vida futura e na ressurreição dos mortos, nem se casam nem se dão em casamento. Na verdade, já não podem morrer, pois são como os anjos, e, porque nasceram da ressurreição, são filhos de Deus... ...Não é um Deus de mortos, mas de vivos, porque para Ele todos estão vivos. E acrescenta S. Lucas que mais ninguém se atreveu a fazer-lhe perguntas. Na verdade, é a vida que é mistério, a morte apenas certeza. Certeza inelutável de que o nosso tempo tem conta, peso e medida. O tempo de Deus é outro, talvez não exista, ou quiçá exista agora e seja eternamente. Mas agora, só é, no coração de cada existência, não um cômputo, mas uma abertura ao desconhecido, um terrível sentido muito fundo de que, apesar da nossa contingência, tudo é graça. E nada pode ser mais dolorosamente gratuito do que sorrir alegremente à vida, a essa vida que sem pedido nosso nos foi dada, e que, com ou sem pedido, nos será tirada. Episódio? Sim ou não, talvez nos valha ir soprando a íntima centelha que, crescendo em chama, nos vá alumiando o caminho escuro do mistério. Digo-te isto tudo, sem pessimismo nem tristeza. Apenas com imenso respeito por todos nós - por ti, por mim, por todos os que, em tantos modos, acreditam ou desacreditam - e com a alma cheia de sabores sempre novos, porque é inefável o gosto antecipado do que ainda não conhecemos. Será mesmo póstuma a carta? Ou tê-la-ei eu escrito antes da hora? Ou pensei-a fora de horas? Ou estarei simplesmente a sentir que, por muito que queira e gostasse, homem nenhum pode recordar ontem, e viver hoje, sem que a manhã por vir lhe entristeça ou deslumbre o coração?  Sinto-me pobre e rico. E dou-te uma mão de afectos, sem anéis...     

 

Camilo Maria

Camilo Martins de Oliveira