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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS DE CAMILO MARIA, MARQUÊS DE SAROLEA

Mercado de Samarcanda.JPG
Richard Zommer – Mercado de Samarcanda

 

Minha Princesa de mim:

 

Vivemos num tempo que estranhamos, porque não nos lhe encontramos o modo. Para mim, estranhíssimo talvez, pois duvido de que outros entendam essa construção discursiva de "não nos lhe encontrarmos o modo"... Repentinamente, caiu-nos o crepúsculo em cima do que pensávamos ser ainda meio-dia. Falo de nós, ditos europeus. Somos, e vamos sendo, cada vez menos o que gostámos e gostaríamos de ser, acordamos irreflectidamente ocupados por mundos que ocupámos. Almocei e jantei ontem com amigos e familiares nossos, alguns deles morando, ou com estadias recentes, em França ou na Bélgica. Todos, por si ou por familiares seus, não disfarçavam o incómodo, quando não receio, que lhes foi causado pelo comportamento ou atitudes de imigrantes africanos e árabes residentes nas cidades onde se encontram. Falei pouco, ouvi mais, todos temos momentos de maior sensibilidade a surpresas da nossa circunstância, e falha-nos então a serenidade necessária a uma análise partilhada das situações... Mas não pude deixar de apontar coisas, que me parecem ser contradições ou esquecimentos, nesses discursos que por aí vamos ouvindo, sobretudo o que possa revelar alguma falta de firmeza ou verdadeira fé em valores que proclamamos e a que chamamos nossos. Já terás reparado em que cada vez mais se ouve reclamar, em nome da reciprocidade, a proibição, nos nossos países, de práticas cultuais públicas,  bem como do uso de vestes e acessórios que sejam apanágio de religiões, etnias e culturas  de gentes em cujos países ou áreas religiosas e culturais, não se consente a construção de templos cristãos nem culto público, ou ainda se imponham interditos decorrentes, por exemplo, da charia: «Se nós somos obrigadas a cobrir a cabeça quando estamos na terra deles, porque é que elas não devem ser obrigadas a descobrir a sua na nossa terra?» Para mim, a razão por que não temos o direito de reagir assim está, precisamente, nos nossos princípios, não nos deles, nem no "olho por olho" de qualquer afrontamento. E se procedermos como eles procedem, estaremos a dar-lhes razão e a não cumprir o nosso preceito de reconhecimento da liberdade e dignidade igual para todos. Do mesmo modo, concordo com a proibição da afixação ou manifestação de símbolos religiosos ou políticos no espaço comum das escolas e outros edifícios e instituições públicas. Na verdade, o espaço público é comum a todos, todos o pagam, todos têm direito a usufruí-lo em igualdade de circunstâncias. Mas também defendo que uma freira possa ir às aulas, na sua universidade, envergando o seu hábito religioso, tal como uma muçulmana poderá apresentar-se com o cabelo coberto, ou um monge budista com ele rapado... A franqueza da exposição de cada um não ofende ninguém e, pelo contrário, é sinal de pluralismo democrático. Talvez mesmo nos ajude a conviver melhor. Não me passa pela cabeça pedir, ou simplesmente insinuar , que se proíba ou censure qualquer publicação como o simbólico Charlie Hebdo, mas também não entendo, precisamente pela mesmíssima razão, porque é que poderei entrar com o jornal bem à vista num desses espaços públicos, quando, se for cristão, me for vedado o porte de uma cruz na lapela ou ao pescoço...

Num mundo em que se tornou muito difícil evitarmo-nos, esquecemo-nos de cultivar a proximidade. Não temos, minha Princesa, o gosto de uma cultura da descoberta do outro e da convivência. Preferimos a ignorância e o ensimesmamento ao conhecimento e à abertura. Num espaço geográfico crescentemente ocupado por outros, consentimos que o nosso espírito seja ocupado por visões fantasiadas da História, por sentimentos de superioridade universal da civilização e cultura que chamamos nossas, sem mesmo nos lembrarmos de que também as partilhámos, ou quisemos impor, e, portanto, consentimos na sua adopção e aculturação. O que os outros esperam de nós não é repulsa e condenação de outros modos de ser, mas antes que sejamos fiéis e dignos cumpridores das nossas promessas, isto é, que saibamos construir com eles, neste tempo, o novo modo de conjuntamente estarmos. Pois é, minha Princesa de mim, lembramos, com saudade do que fomos -  melhor, de como nos imaginamos no passado - uma história que não é só nossa - uma história que também foi vivida, e pode ser apreciada, por olhares e sentimentos alheios ao nosso autismo. Temos de admitir que possa haver ressentimento de populações árabes e africanas - e muitas outras - contra os ocupantes que fomos, os poderosos que as submeteram a uma ordem socio-económica e política que servia os "nossos" interesses e objectivos, e que, para o efeito, as quis assimilar a uma cultura que lhes era estranha. É natural que tal mágoa sobreviva, tal como compreendo que nos sintamos orgulhosos de antepassados - e mesmo familiares próximos - que, com sacrifício e um certo sentido do dever de "civilizar" e "educar", com muita abnegação e coragem - e até desejo de partilha de valores culturais e religiosos, ou de saberes e técnicas que considerávamos factores de desenvolvimento humano  -  foram fazendo, em terras longínquas, o seu trabalho. Claro que também houve crueldade e excessos, mas não se reescreve a História. Esta, que é comum a todos os homens, com os inerentes defeitos e qualidades, ganha sempre, e só, quando é partilhada entre as diferentes tradições e pontos de vista, quando o preconceito de cada um se deixa vencer pelo anseio de todos à harmonia, e aceita corrigir e ser corrigido. O que lá vai, lá foi, só o futuro será o que pudermos construir no presente. Anda por aí outra mania nefasta: a da generalização que torna temerários os nossos juízos, das situações, dos actos e comportamentos de muita gente. Assim, os muçulmanos serão todos, salvo raras e quase incompreensíveis excepções, uns tipos maus, violentos ou, pelo menos , perigosos e ameaçadores. O Daech, a Al Qaeda, etc, são frutos naturais e inevitáveis do islão. Olvidamos que os Khmers vermelhos do Camboja, os nazis alemães e europeus, os russos e outros estalinistas, as ditaduras militares, aqui e ali, tinham e têm pecados iguais, cometeram crimes tão grandes e, muitas vezes, maiores...e de muçulmanos nada tinham! A "nossa" Europa, por conta dela, conseguiu, no período de meio século, travar no seu seio  as duas guerras mais mortíferas da História e, mais ainda, levá-las a outros mares e continentes, envolvendo na carnificina outros povos, incluindo os soldados africanos e de outras origens que, originários das nossas colónias, foram obrigados a combater em solo europeu... Talvez por termos finalmente despertado de tal pesadelo (teremos?), sejamos hoje maioritariamente avessos a qualquer prática ou horizonte bélico, ainda por cima confortados pela sombrinha do poderio militar norte-americano. Recentemente, um estudo efectuado em sessenta e cinco países concluía que, por regra e em todos os continentes, mais de 70% dos inquiridos respondia afirmativamente à pergunta "estarias disposto a combater se o teu país entrasse em guerra?", e assim também mais de metade dos norte-americanos, mas apenas 20% dos europeus... Parece-me, por isso, que os europeus sofrem de desilusão e cansaço, mas, em vez de terem a sageza e a fortaleza de se armarem e proclamarem os princípios de dignidade, igualdade e justiça - que tantos séculos, lutas e sacrifícios custaram - como único caminho viável para a paz universal, se encerram num receio subconscientemente alicerçado na convicção da sua superioridade, por paradoxal que tal pareça. Será que chegámos ao ponto de não querermos ser incomodados, de nos acharmos sujeitos só de direitos, sendo dever apenas o adquirido que recebemos e gerimos a capricho? Escrevo-te tudo isto em carta, como desabafo, não pretendo construir teorias, nem defender posições, escolhi-te para contigo partilhar o que pensossinto, e tantas vezes me é difícil explicar. Acredito, minha Princesa, na bondade inata da pessoa humana, à imagem e semelhança de Deus, que a prática da verdade é o amor, esse que omnia vincit. Eis uma convicção íntima, que é sempre um apelo à minha própria conversão interior... Mas Deus quisesse que ela fosse contagiosa, que em todos vencesse todos os medos, porque o medo mata, sim, mata pelo menos tanto ou mais do que a crueldade e a violência (por aqui poderemos também entender melhor a dignidade do direito de legítima defesa). E é por isso, profundamente, que lamento, como tenho lamentado, que, na sequência dos atentados de Paris, ignobilmente perpetrados como tantos outros, antes e depois, com claros obectivos de confusão e desestabilização, se tenha falado mais do direito à liberdade de expressão (tal qual, igualmente, o beatério fala de ofensas ao sagrado coração...) do que no direito à vida, esse que, sim e sem dúvida, pode concitar um acordo universal, posto que nele todos nós nos fundamentamos. Porque nada é tão ilustre como o bom exemplo, termino esta carta com mais uma lembrança do papa Francisco, da sua corajosa presença e das suas palavras na Nápoles dos pobres - pobres em sentido lato: desprovidos, vítimas e mafiosos. Qualquer forma de corrupção, malevolência e violência só poderá ser vencida pela coragem de quem ama. Dou-te a mão e um beijo de esperança.


Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira