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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS DE CAMILO MARIA, MARQUÊS DE SAROLEA

Sir Alec Guinness as Monsignor Quixote.JPG
Sir Alec Guinness as "Monsignor Quixote"

 

Minha Princesa de mim:

 

Já chegou a primavera, vem próxima, a celebrá-la, a festa da Páscoa. Escrevo-te em Domingo de Ramos, que foi sempre, para mim, a celebração da aclamação popular do sacrifício anunciado, desse gosto (mórbido?) de que seja bom que um homem morra pelo povo todo... E é certo que continuamos a teimar - está na nossa cultura - na necessidade de um bode expiatório, como aquele que os judeus antigos expulsavam para o deserto e levava, pobre animal, a carga pesada dos pecados dos homens... Tem muito que se lhe diga, tem mesmo, esta cultura da culpabilização remetente. Pecado, em tal contexto, é, antes do mais, a violação de um interdito religioso, seja ele animista, imaginário e pagão, ou seja violação de um hadith de Maomé, ou de um mandamento divino que, no júdeo-cristianismo, ou nas religiões ditas monoteístas, os poderes clericais se esmeraram em alastrar por infinitas normas canónicas. Um susto tão grande, que  pobres pessoas - para se manterem na comunhão das suas irmandades - foram tendo que renegar o que livremente pensaram, o que corajosamente sentiram, para a si mesmas se acusarem... Publicamente, para edificação de todos, fomos insistindo nas doutrinas das igrejas, na afirmação de conveniências circunstanciais como princípios eternos e imutáveis. Insistimos no transitório, esquecemos a tradição da verdade que liberta (...et veritas liberabit vos...). Confundimo-nos, afinal, com culpabilidade, alienámos, de modos variados, a  responsabilidade. E este pobre diabo, que te quer tanto, e tanto bem, insiste em pensar, minha Princesa de mim, que, de culpas, sabe Deus, mas responsáveis devemos nós ser... A grande, fundamental, diferença entre culpabilização e responsabilização está em que as culpas se atiram sobre nós ou sobre outros  -  com mais ou menos hipóteses de perdão  -  mas a responsabilidade, essa sim, é sempre só nossa, não é aferida por juízo de terceiros, é simplesmente a resposta que a nossa consciência dá... Exige formação dessa própria consciência, a procura do conhecimento necessário à construção dum espírito crítico. No que nos toca, a cada um de nós como pessoa e sujeito de direitos, é sobretudo a dignidade com que definimos os nossos critérios, com rigor e prudência (o tal amor sagaz de que falam Sto. Agostinho e S. Tomás), mais do que a pressa com que possamos trucidar terceiros ou correr - se considerarmos que é culpa nossa - ao alívio de qualquer confessionário. Quem quiser praticar a justiça terá, certamente, de ajuizar, não tem que julgar, a si ou a outros, reclamando-se de funções ou poderes que não lhe competem nem foram conferidos. Apenas na ordem social - e no quadro do necessário regulamento de comportamentos que podem ser conflituosos ou ofensivos - se justifica, pela procura da harmonia, o exercício de um poder judicial, garante de direitos e paz. Mas como atitude de cada um, parece-me a mim, socorramo-nos desse espírito de justiça que inspira Aristóteles, cuja leitura quero, com gosto, partilhar contigo (respigo do livro V da Ética a Nicómaco): Quanto à justiça e à injustiça, devemos examinar quais podem ser as acções que elas põem em jogo, que espécie de média constitui a justiça e entre que extremos se situa o justo como meio termo... Ora esse meio é o equitativo porque, em cada tipo de acções em que há lugar para o demasiado e o demasiado pouco, há lugar também para o equitativo...

(Faço mesmo um parêntese, deu-me a lembrança riso: já cantava o Marceneiro que "amar de mais é loucura, amar de menos maldade"... ou qualquer lição assim!)

Daí, pensossinto eu, a importância da primazia do juízo da consciência formada, ou discernimento -  que necessariamente implica a diferenciação entre o essencial e o acessório, isto sendo, em muitos casos, a percepção dos tempos e modos das coisas - sobre a afirmação intratável de princípios, como se vivêssemos numa ideal eternidade... Vê bem, Princesa, olha para mim, que andei vagabundo pelo mundo, desde pequeno, não achas que terei, na minha alma, de encontrar um lugar para cada ser humano, na sua contingência e cultura, que o deixe respirar na harmonia? Li há pouco a notícia de que uma mulher muçulmana, cidadã francesa, casada, de 28 anos de idade, foi brutalmente agredida, em Toulouse, por dois gauleses (castiços?), pois trazia a cabeça coberta por um hidjab, esse véu cujo porte, na Europa cristã - mais renda, menos tecido - era ainda, há poucas décadas, obrigatório para as mulheres nas igrejas católicas... Salvou-lhe a vida um dos dois assaltantes, por ter reparado em que ela estava grávida e impedido o outro de a esfaquear. Este ainda lhe gritou "Tira esse véu, muçulmana porca, não queremos m... dessas aqui!" Valeu-lhe a ela - francesa, como seu marido muçulmano, desde a nascença - essoutro rapaz que, pesasse o seu momento de tensão agressiva, se lembrou de que, em consciência, acima de tudo o mais, devemos respeitar o direito à vida. De coisa nenhuma, para além da afirmação de um "princípio", se lembrou outra senhora francesa,  republicana e laica, que obrigou um rabino judeu, tão cidadão de França como ela, a tirar o solidéu que lhe cobria a cabeça para poder votar nestas eleições regionais... Em nome do laicismo que se atira ao fanatismo religioso, ela não percebeu que se comportava movida pelos mesmos propósitos da santa inquisição católica, dos massacres da Saint Barthélemy em 1572, da perseguição de católicos por Cromwell, de tantas guerras, sevícias e massacres perpetrados em nome de "princípios" religiosos, políticos ou ideológicos. Quiçá por excesso de zelo, a devota e dedicada republicana laica esqueceu-se, todavia, de que a lei proibindo o porte de insígnias ou acessórios identificadores de crenças não se aplica nos locais de voto... Ou estaria simplesmente obcecada pela preocupação do respeito por um princípio, e da correcção, ou mesmo castigo, dos seus violadores? Magoa-me, muitas vezes, que se impute às religiões a culpa dos conflitos. Não por meu excessivo amor à camisola católica que visto, menos ainda por pensar que as instituições da minha religião, ou qualquer outra, nunca foram responsáveis, directa ou indirectamente, através de afirmações "doutrinais", pretensões disciplinadoras ou tentações totalitárias, por muita estupidez e muitas barbaridades por aí cometidas... A minha mágoa, Princesa de mim, vem tão somente de pensarsentir que tanto mal é feito invocando-se o nome de Deus misericordioso para não usarmos de misericórdia e pretendermos impor aos outros a "verdade" que eles não entendem como nós. O professor da universidade de Paris IV, Denis Crouzet, especialista em guerra das religiões - e que publicará brevemente, com Jean-Marie Le Gall, um ensaio intitulado Au péril des guerres de religion - afirma, em recente entrevista a Le Monde: Temos de pensar no facto religioso como matriz do conflito. É uma cultura que estrutura as violências, ainda que seguindo modalidades diferentes. A religião dominante - o catolicismo na Europa dos séculos XVI e XVII, o islão sunita no mundo árabe de hoje - considera-se ameaçada: conduz então uma guerra "purificadora", visando exterminar todos os que pactuarem com o "mal"... E, comparando iconografia desses anos de guerra entre cristãos católicos e protestantes, todos europeus, com os vídeos do Daech, estado islâmico do nosso tempo, conclui que uns nada têm a invejar aos outros... E eu acrescento que a obsessão laicista hodierna tem a mesma motivação psíquica, não sendo, todavia, religiosa. A França que se reclama de uma "certa república", não só proíbe o uso pessoal de símbolos religiosos em espaços públicos (estatais), como até deslocou as datas de certas férias escolares, tradicionalmente concedidas por ocasião de festas cristãs (a Páscoa, por exemplo), para que não houvesse confusões, nem se desse azo a que minorias de outras religiões pudessem reclamar. Esqueceu-se essa coisa comezinha: essas férias não eram já só celebrações cristãs, eram parte integral, actual e antiga, da identidade francesa. Nenhum muçulmano, vivendo em França, teria de reclamar, limitar-se-ia a aceitar a circunstância que o acolhera. Hoje, paga à laicidade o preço do que não reclamou, não podendo, ele tampouco, sobretudo se for mulher, vestir-se na escola segundo a sua própria tradição. Minha muito querida Princesa de mim: sejam crentes ou ateus, religiosos ou laicos, estou farto de beatos. Sejamos mais responsáveis pelo saudável convívio de todos!

(Abro ainda um segundo parêntese, espero que também te rias: contou-me um amigo padre que, naquele tempo em que viajava à boleia, por essas estradas da Europa, reparou na vantagem de usar colarinho romano, essa coisa que clérigos põem ao pescoço... Em dia de canícula e camisa aberta, não trazia nenhum, só um farnel que lhe preparara a mãe para a viagem. Ora, quis o Espírito Santo que a boa senhora lhe tivesse ali posto um queijo camembert... Ideia genial! O nosso cura, com o canivete, corta cuidadosamente a casca do queijo à volta e cola a branca fita ao pescoço. Logo conseguiu boleia, e um toque final: "Foi um prazer trazê-lo, senhor padre, apesar do cheiro a queijo...!")

Não te zangues muito comigo: não sou pedreiro livre, sou só livre pensador. Não tão livre que me satisfaça ou sequer contente, pois a vida de cada um de nós é feita do renovado cansaço que, dia a dia, vamos consentindo, na procura de um novo olhar. Como cão de guarda, a esse arame fico preso. E teu amigo, sempre.


Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira