CARTAS DE CAMILO MARIA, MARQUÊS DE SAROLEA
Minha Princesa de mim:
Escrevo-te do campo, estou só no silencioso sossego desta casa, que me é tão familiar e amigo... O dia está soalheiro e ventoso, vejo pelas janelas largas o bailado de ramos verdes, um contentamento de natureza jovem. A Primavera é uma festa. Há pouco, uma mensagem de amiga minha recordou-me as variações para piano, opus 27, do Webern, e logo quis escutar essa obra despojada e lacónica, cinco minutos de diálogo com o silêncio. Não sei porquê, ocorreu-me que a economia de meios de expressão, na música de Webern, é uma ascese que nos conduz a uma contemplação de cariz religioso. O rigor é sempre um esforço, mas há esforços naturais, como se fossem propensões da nossa personalidade. Talvez me engane, mas sinto-me muito próximo de Webern no gosto da solidão e do silêncio, no conforto panteísta da comunhão com a natureza. Não é ensimesmamento, antes contemplação do infinito maior que nos envolve... Por outro lado, reconheço a formação tomista que me foi dada - fiz o liceu num colégio de dominicanos, e minha Mãe tinha uma forte relação intelectual aos Maritain - e essa atenção ao diferenciar para compreender como condição meridiana do pensamento. Assim, a minha atitude religiosa é sempre passada pelo crivo da razão, muito embora eu não pretenda que esta possa entender totalmente, ou, menos ainda, esgotar a fé. Na sua biografia de Webern (Seghers, Paris, 1969), Claude Rostand escreve: Levantou-se muitas vezes a questão de saber qual era a exacta atitude religiosa de Webern. E pôs-se a questão porque muitas das suas obras - e ao longo da sua vida - são de inspiração religiosa: quase um quarto dos textos que ele pôs em música (dezassete em sessenta e um) estão nesse caso - e nem sequer incluímos nesses dezassete os seis poemas da Cantata, opus 31, que o próprio Webern nos diz constituírem uma espécie de Missa Brevis, muitos dos textos de Hildegard Jone situando-se muitas vezes entre o amor divino e o profano. De facto, essa questão não parece muito misteriosa, se se quiser pensar nela, já que o tema do sentimento religioso está constantemente presente naquela produção. Até parece muito simples e banal. Webern nasceu católico. É evidentemente crente. Isso não parece levantar-lhe qualquer problema de doutrina, menos ainda de metafísica... ...A sua fé é segura, forte, calorosa, mas não se encerra numa prática estrita. O seu panteísmo natural foi reforçado pelo panteísmo goetheano... ... Muitos dos textos postos em música por Webern têm por tema, quer o amor de Jesus ou da Virgem, quer o sentimento trágico - no sentido grego - da Crucifixão. Embora simples, a situação é mista, porque os dois temas, de certo modo evangélicos, são dominados pela presença superior e omnipotente de um Deus de que a grandeza e a beleza da natureza, dos montes, são uma imagem constantemente presente no espírito do músico. Embora fosse pouco à igreja, tinha respeito pela piedade, e tinha ele mesmo a sua forma de piedade. Fausto e a Bíblia foram as leituras cujo alcance espiritual ele apreciava. As mais belas obras vocais de Webern talvez sejam os Três Cantos Extraídos de "Viae Inviae" de Hildegard Jone, oito minutos de lirismo para soprano e piano, que o meu presente estado de espírito hoje saboreou melhor. Os poemas da amiga do compositor manifestam muito do que aqui acima se diz dele: O coração sombrio, que em si mesmo escuta, percebe a primavera na brisa e no perfume que pela luz se abre; mas também a sente no reino sombrio das raízes que tocam os mortos. Tudo o que cresce estende as suas tenras raízes para o que na escuridão aguarda; o que nasce bebe a força e a quietação da noite, antes de as transmitir à luz, antes de atirar ao céu o seu perfume como cálice de amor, e antes de uma palpitação lhe trazer a vida. Não me pertenço. As nascentes da minha alma correm nos prados de quem me ama, e fazem desbrochar as flores e são dele. Tu não te pertences. As ribeiras da tua alma, ó homem por mim amado, correm em mim, fecundantes. Não nos pertencemos, nem eu, nem tu, nem ninguém. Esta canção "Das dunkle Hertz", ou sombrio coração, é a primeira da opus 23. A terceira, "Herr Jesus mein", meu Senhor Jesus, reza assim: Meu Senhor Jesus, em cada manhã entras na casa onde corações batem e aí pões sobre cada mágoa a tua mão misericordiosa. Por todos os seus pássaros, a primavera me diz quanto lugar há para a alegria. Há tanto, há tudo, e não há muros entre nós e Deus. Ele toca-nos com cada sopro do ar, com cada ramo, e debruça-se para as flores dos prados, a nossos pés, e isso nos faz ajoelhar. E amanhã, vós que respirais tereis sol ainda. E vós que dormis para sempre, também para vós haverá dia!
Saí da quinta, para ir almoçar à Mãe d´Água, regressei agora a este silêncio rodeado de Primavera alegre. Relendo esta carta, ocorre-me o que Wilhelm Furtwängler certo dia disse de outro Anton, não o Webern, mas o Bruckner: Ele é, na história da arte europeia, um dos raríssimos génios a que o destino concede o poder de dar expressão ao sobrenatural e de tornar o divino presente no nosso mundo humano! Já noutra carta te referi, Princesa, a emoção sublime de Mahler quando pela primeira vez dirigiu um Te Deum de Bruckner. Das missas que este compôs, será aquela em mi menor a que prefiro, quiçá por ser a mais litúrgica e trazer-me saudades do canto gregoriano. Mas esta tarde vou escutar a sua nona sinfonia, inacabada, imperfeita como as capelas da Batalha. Omnia ad majorem Dei Gloriam, assim a quis o seu autor que dedicara duas anteriores sinfonias (a 7ª e a 8ª) a duas majestades (Luís II da Baviera e Francisco José, imperador de Áustria, respectivamente) e quanto a esta escreveu: A minha obra derradeira, dedico-a Àquele cuja Majestade está acima de todas as majestades. A Deus a ofereço, se Ele a aceitar. Aquilo que eu, Princesa, nessoutra carta te dizia sobre a humildade do artista, venho encontrar, aqui e agora, nesta recordação dramática do canto de cisne de Anton Bruckner, que viu recusados os seus pedidos de casamento. A nona é, afinal, a sinfonia do adeus: Senhor, sofri! Mas dou-Te graças pelos meus sofrimentos. O meu coração enternecia-se de amor, mas nenhuma mulher me amou. Era a Tua vontade, e foi feita a Tua vontade. Lutei e perdi muitas vezes. Estou cansado da vida, mas não da existência, porque sempre Te pertenci. Aproxima-se o meu momento final. Ó meu bom Deus, deixa-me terminar este hino à Tua grandeza! Não me recuses essa alegria, e virei a Ti, maravilhado, de alma serena... Ficou imperfeita a sinfonia. Como todos nós, pois ser santo é somente uma vocação. Tudo o mais nos será dado por acréscimo. A própria vida. E nem tudo do que fomos fazendo nos saiu mal. À quinta sinfonia do Bruckner - obra prima de contraponto - muitos musicólogos e críticos chamaram Fantástica Sinfonia. Mas afinal ficou com outro nome que lhe deram: Sinfonia da Fé. Foi composta mais de dez anos antes da nona. Mas já então o compositor devia saber que substantia fidei est sperandarum rerum: a substância da fé está nas coisas que devemos esperar.
Amainou o vento, vai descendo sobre os campos essa sombra que, como noite, torna mais celeste o céu. Dou-te a mão.
Camilo Maria
Camilo Martins de Oliveira