CARTAS DE CAMILO MARIA, MARQUÊS DE SAROLEA
Minha Princesa de mim:
Nasceu cinzenta mais uma manhã neste outonal Agosto. Vão-se repetindo, melancólicas, estas primeiras horas de dias que esperávamos claros de sol. No Verão, gosto de luz quentinha e de preguiça, de sentir crescer e encher o ar que respiramos essa alegria sossegada e amiga de toda a gente. Se o céu teima em mostrar-se grisalho, vou em busca de alguma exuberância. Este ano, tem-me dado para me animar com óperas do Rossini. Ontem ainda me ri, e muito, com Le Comte Ory. Hoje, divirto-me a ouvir La Cenerentola, com a Cecília Bartoli na protagonista. No libreto de Jacopo Ferretti, a borralheira Angiolina (a angélica) personifica o subtítulo de um conto que tem como remoto antepassado o Cendrillon, do setecentista Charles Perrault, também designado por O Sapatinho. Aqui, esse "petit soulier" é substituído por La Bontá in Trionfo - assim cumprindo o desejo que Rossini sempre manifestou de não incluir elementos sobrenaturais na ópera. A bondade triunfante é a valorização do mérito do amor do próximo sobre qualquer outro milagre ou feitiço. Não há fada-madrinha, nem truques, nem calçado que sirva só num pé: é Alidoro, filósofo e mestre de Ramiro, príncipe de Salerno, que, disfarçado de mendigo, descobre a gata borralheira, pela caridade que ela lhe faz, ternura que ele planeará recompensar, conduzindo-a até ao seu senhor. O milagre verdadeiro é o amor que temos, ou o bem que queremos e fazemos. A pobre borralheira assim tem fé e esperança. E, na primeira ária que canta, pareceu-me reconhecer aquela máxima francesa: Aide toi, le Ciel t´aidera. O Céu conforta o nosso bem:
Una volta c´era un re,
che a star solo s´annoiò;
cerca, cerca, ritrovò!
Ma il volean sposare in tre.
Cosa fa?
Sprezza il fasto e la beltà,
e a la fin scelse per sé
l´innocenza e la bontà.
Era uma vez um rei, aborrecido de estar só; procurou, procurou e encontrou! Mas queriam casá-lo com três. Que fez? Despreza o fasto e a beleza, e por fim para si escolhe a inocência e a bondade. Repara, Princesa, como é contagioso o bem: não é só a caridade ou amor dela que triunfa, mas ainda a felicidade que, para si mesmo, ele descobre e escolhe. Ao escrever-te esta carta, adivinho o teu riso, ao leres que esta história me lembra a Julia Roberts no Pretty Woman... Em todos nós há zonas sombrias, erros da vida. Mas em cada um, sempre, mesmo escondida ou adormecida, vive uma inocência criadora de bondade e beleza. Quando deixamos abrir-se essa flor, acende-se, em nova luz, o nosso olhar, e há mais verdade humana no nosso sorriso. Surgiram, no decurso da História e por todo o mundo, desde a China do século IX a. C. até aos irmãos Grimm e seguintes, contos vários, com títulos diversos e diferentes enredos, todos eles, afinal, retomando esse milagre da conversão possível do ser humano, como, por exemplo na peça Pigmaleon, do Bernard Shaw, que deu o filme My Fair Lady. Creio já te ter dito, Princesa de mim, como tantas vezes me tem ocorrido essa imagem da fénix renascida, não só em 4ª feira de Cinzas, mas até na Vigília Pascal, quando ouço aquele O felix culpa! de Sto. Agostinho... De cinzas somos feitos, como o borralho. E a princesa que se descobre na menina de ignorada bondade é a Cinderela (de cinder ou cinza, em inglês), Cenerentola (de cenere), Cendrillon (de cendres), Cenicienta (de cenizas), Aschenputtel (do alemão Aschen, cinzas, como no vocábulo inglês, de raiz saxónica, ashes), etc. Qual fénix, também do cinzento desta manhã me nasceu o gosto alegre da música de Rossini. Sou um gato borralheiro, preguiçoso e talvez feliz. Dou-te um sorriso, ressonando.
Camilo Maria
Camilo Martins de Oliveira