CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM
Minha Princesa de mim:
Não sei ainda explicar por que deixei a tua companhia ou, melhor dizendo, porque deixei de te levar a companhia das minhas cartas. É certo que a morte sucessiva de vários e queridos amigos - e, sobretudo, a do meu último irmão, o Gaëtan - me abalou e destruiu paredes cujo convívio, à minha volta, me protegia. Assim fiquei, não sei se entre ruínas ou se apenas só e perdido num deserto que desconhecia. Mas até os desertos - ou eles mesmos mais ainda - abrigam, na aparente e infinita desolação, oásis onde renascem e desabrocham as flores de muitas amizades. E têm sido muitas as que carinhosamente me acolhem e dão sustento, sempre mais presentes e prontas na vida real do que miragens que, por aí, se lançam aos ventos. Muitas vezes pensossinto comigo que nunca perderei essa forma temporal e terrena da esperança, que creio ser a confiança visceral no valor divino do humano, enquanto for conseguindo enxergar tantos bons samaritanos pelos caminhos das nossas vidas.
São esses santos, sempre, hierofanias, manifestações do sagrado, da presença de Deus connosco no quotidiano. Jesus diria que só gente de pouca fé pedirá outros sinais, milagres e aparições, ou mais ainda, por uma qualquer eficácia de gestos mágicos sacrificiais. Mas só o amor do próximo é como um raio do divino em qualquer coração da humanidade. Li hoje (17/9/19), no jornal em linha Sete Margens, um texto de Sara Jona Laisse, docente de Cultura Moçambicana na Universidade Politécnica (Moçambique), intitulado "Albino não morre, só desparece"? E se fôssemos "bons samaritanos"?:
... Amar o próximo é um mandamento em qualquer tradição do mundo. Já o referi, neste espaço, quando comparei os mandamentos da "lei de Deus", de tradição católica, aos mandamentos da cultura e religião bantu, e acredito que nenhuma religião no mundo nos mande o contrário. Haverá, certamente, em cada canto deste mundo, um convite a sermos bons samaritanos.
São Leão Magno, o Papa que enfrentou Átila, o Huno, diz, de modo muitíssimo melhor do que eu, o essencial dos meus textos intitulados COMO OS CRISTÃOS SE TORNARAM CATÓLICOS, já publicados no bloque do Centro Nacional de Cultura - e que também te enviarei, a ti e a mutos amigos - nos trechos do seu Sermão XII e da sua Carta XXVIII a Flaviano, aqui transcritos:
É indubitável, caríssimos, que o Filho de Deus se uniu à natureza humana tão intimamente que não só nesse homem, que é o Primogénito de toda a criatura, mas também em todos os seus santos, está o mesmo Cristo. E como a Cabeça se não pode separar dos membros, também os membros se não podem separar da Cabeça.
E se é certo que não é próprio desta vida, mas da eterna, que Deus seja tudo em todos, também é verdade que, já desde agora, Ele habita inseparavelmente no seu templo, que é a Igreja, segundo a sua promessa: Eu estou convosco todos os dias até ao fim dos tempos.
Portanto, tudo o que o Filho de Deus fez e ensinou para a reconciliação do mundo, podemos reconhecê-lo não só na história do passado, mas senti-lo também na eficácia do que ele opera no presente.
... A humildade foi assumida pela majestade, a fraqueza pela força, a mortalidade pela eternidade. Para saldar a dívida da nossa condição humana, a natureza impassível uniu-se à nossa natureza passível, a fim de que, como convinha para nosso remédio, o único mediador entre Deus e os homens, o homem Jesus Cristo, pudesse ser submetido à morte como homem e dela estivesse imune como Deus.
Numa natureza perfeita e integral de verdadeiro homem, nasceu o verdadeiro Deus, perfeito na sua divindade, perfeito na sua humanidade. Por «nossa humanidade» queremos dizer a natureza que o Criador desde o início formou em nós, e que Ele assumiu para a renovar.
E se, seja qual for a nossa religião, ou mesmo nenhuma, soubermos ouvir esse apelo do amor de Deus que atravessa a nossa humanidade, a de todos nós, não será só ela a renovar-se, mas toda a face da terra... O meu irmão Gaëtan será, como tanta outra gente que, por aí, vai aprendendo a olhar-se e aos outros, um exemplo de que o amor do próximo, ou seja, a atenção aos outros, não nos nega, não nos esconde, antes nos projeta e põe no nosso lugar: na «nossa humanidade», nessa natureza que o Criador desde o início formou em nós...
Tal «natureza» que, de si mesmo, tão bem - e sempre tão perscrutadora e interrogativamente - foi desenhando nos seus autorretratos, procurou também, quiçá se como comunhão eucarística, nos rostos humanos que encontrava, ao longo de muitos anos, nas ceias de Natal com sem-abrigo, que servia e partilhava, de preferência a sentar-se à mesa mais rica (?) de familiares e amigos. Talvez lembrado do que Jesus dizia sobre quem era a sua família... Nunca lhe perguntei porquê. Hoje, quando já não posso ouvir qualquer resposta da sua boca, talvez escute, num murmúrio da alma, minha Princesa de mim, a história antiga de que ser humano é andar peregrinamente à procura.
Camilo Maria
Camilo Martins de Oliveira