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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM

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     Minha Princesa de mim:

 

   Para começar esta em consonância com coisas que, em carta anterior te disse, Princesa, traduzo-te um trecho, quiçá algo longo, do capítulo XXVII do Pilote de Guerre do nosso já amigo Antoine de Saint-Exupéry. Mas creio também que nos ajudará a perceber porque é que alguns sages dizem que o cristianismo não é um humanismo... Sabes? Penso que é, talvez transcendental, pela pessoa de Cristo com duas naturezas, a divina e a humana. Afinal, conceitos e palavras valem sobretudo pelo sentido que lhes atribuímos... Sabemos bem que o cristianismo não é panteísta, nem os santos que inspiram devoções e cultos cristãos são deuses ; nem sequer budas. Mas não negaremos que o Novo Testamento está cheio de referências à humanidade nova, chamada à união com Deus pelo sacrifício e ressurreição de Jesus Cristo, o Novo Adão, de cujo corpo todos somos membros. Posso até dizer que o cristianismo é um humanismo resgatado e preparado para um mundo novo. E, no final de contas, é certamente a religião que professa a humanidade de Deus. A tal ponto, que até nos leva a perceber que já no Antigo Testamento o Deus Único do povo judeu vai surgindo no quotidiano dos homens.

   Os trechos que abaixo traduzo são todos respigados do penúltimo capítulo do Pilote de Guerre, o XXVIII. No seu conjunto, constituem, mais do que o cerne da meditação proposta pelo autor do livro, quiçá uma summa do pensarsentir de Antoine de Saint-Exupéry :

   Estraguei tudo. Delapidei a herança. Deixei apodrecer a noção de homem (humano).

   Para salvar esse culto de um príncipe contemplado através dos indivíduos, e a alta qualidade das relações que esse culto fundava, a minha civilização tinha, todavia, gasto uma energia e um génio consideráveis. Todos os esforços do «humanismo» se consagraram a esse objectivo. O humanismo escolheu para sua exclusiva missão iluminar e perpetuar a primazia do homem sobre o indivíduo. O humanismo apregoou o homem.

   Mas quando se trata de falar sobre o homem, torna-se incómoda a linguagem. Diferencia-se o homem dos homens. Não se diz nada de essencial sobre a catedral, se se falar só das pedras. E nada de essencial se diz do homem, se se procurar defini-lo por qualidades de homem. Assim sendo, o humanismo laborou em direcção a uma barreira. Procurou encontrar a noção de homem por uma argumentação lógica e moral, e a transportá-lo assim para as consciências.

   Não há explicação verbal capaz de substituir a contemplação. A unidade do ser não é transportável pelas palavras. Se quisesse ensinar a homens, cuja civilização o ignorasse, o amor de uma pátria ou de uma terra própria, não disporia de qualquer argumento para os comover. O que compõe uma terra nossa são campos, pastagens, e gado. Cada um, e todos juntos, têm por função enriquecer. E todavia, na terra nossa, algo escapa à análise dos materiais, já que há proprietários que, por amor à sua terra, se arruinariam para salvá-la. É pois pelo contrário esse «algo» que enobrece com particular qualidade os materiais. Estes tornam-se gado de uma terra, prados de uma terra, campos de uma terra...

   Assim também nos tornamos no homem de uma pátria, dum ofício, duma civilização, de uma religião. Mas antes de nos reclamarmos de tais seres, convém fundá-los em nós. Pois que linguagem alguma transportará o sentimento da pátria até onde ele não estiver. Só por actos fundaremos em nós o ser que reclamamos. Um ser não pertence ao império da linguagem, mas ao dos actos. O nosso humanismo menosprezou os actos. Falhou em sua tentativa.

 

   [Apenas este parêntese, Princesa de mim, para te lembrar ditos antigos, máximas e propósitos de vida, que ouvíamos na infância, tais como : Res non verba. Ou, já jovens crescidos, aqueles rasgos de divertidas observações queirosianas, em que, por exemplo, se comparavam profissões de fé patrioteiras a declarações de amor declamadas "a uma espanhola barata".]

  

   Eis que o acto essencial recebe aqui um nome : é o sacrifício.

   Sacrifício não significa nem amputação nem penitência. É essencialmente um acto. É um dom de si mesmo ao ser que se pretende reclamar. Só compreenderá o que é uma terra sua aquele que lhe tiver sacrificado uma parte de si, tiver lutado para a salvar, e esforçado por torna-la mais bela. Então lhe virá o amor da sua terra. A nossa terra não é uma soma de interesses, e será errado pensá-lo. É a soma dos dons.

   Enquanto a minha civilização se apoiou em Deus, conseguiu salvar essa noção do sacrifício que fundava Deus no coração do homem (humano). O humanismo menosprezou o papel essencial do sacrifício. Pretendeu transportar o homem (humano) por palavras e não por actos.

 

   Estas palavras foram sendo escritas pelo capitão piloto aviador Antoine de Saint-Exupéry, no activo, nos primeiros anos da segunda grande guerra. Reflectem actos efectivos, e sobre eles pensamsentem. O seu avião foi finamente abatido sobre o mar, em missão de reconhecimento, já próximo do fim da guerra. E desapareceu. Mas recordo-o sempre, ao ler este passo da 1ª Carta de São João : «Nós sabemos que passámos da morte para a vida, porque amamos os irmãos. Quem não ama permanece na morte." Na verdade, é do ensinamento, não só de São João, mas da própria essência do cristianismo : já que nenhum de nós viu Deus, não poderemos então dizer que amamos a Deus, que ninguém vê (ou o Homem, conceito abstracto), se não amarmos os indivíduos que são nossos irmãos.

   Aliás, vou confidenciar-te, Princesa de mim, uma experiência íntima que tenho vindo a viver, ao longo do ano que passa. Parece-me que o amor fraterno é como que um adiantamento do nosso encontro final com Deus. Neste sentido, é um verdadeiro acto de fé, pois é substância das coisas que esperamos. Venho perdendo, como sabes, a companhia física de muitos amigos, cujos corpos são cremados ou enterrados. Acabo, agora mesmo, enquanto te escrevo, de saber que morreu o meu querido amigo João Maria Torre do Valle, exímio guitarrista, que tantas vezes, e em tantas partes do mundo, com sua guitarra portuguesa e a companhia da viola de fado do Fernando Alvim, me acompanhou quando eu cantava. Também falávamos muito, desde os tempos da Faculdade de Direito de Lisboa, de outros temas, e esses diálogos ainda não morreram. Acontece-me agarrar no telefone para falar ao Gaëtan, meu irmão de sangue, morto há quase dois meses, ou ao João de Deus ou ao Nuno Lorena.. e a muitos outros que a morte nos tirou da vista  -  alguns há quinze anos, como o António Luciano Sousa Franco, ou mais ou menos, como o Francisco Sá Carneiro, o Magalhães Mota, o Rogério Martins ou o Vítor Wengorovius. Todavia diferentes entre si, a cada um deles e muitos outros, e outras, me ligaram laços de profunda amizade, dessa tal que a liberdade e o gosto do diálogo edificam dentro de nós e em nós permanece para sempre. Ainda há dias, quando deveria fazer anos a Maria Benedita, falei com o Gonçalo, viúvo e triste, mas sustentado por essa presença invisível do amor, que é muito mais do que memória. E também ele me confidenciou que nunca apagava das suas listas os números de telefone dos amigos por agora longe do alcance das nossas redes de comunicação...

   Todos individualmente reconhecidos e amados. Todos vivos na nossa humanidade comum, a tal que mora no coração de Deus.

                                      Camilo Maria

  

 Camilo Martins de Oliveira