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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM

 

Minha Princesa de mim:

 

   Lembrei-me agora de uma frase de Umberto Eco, mas não me recordo de quando nem onde a li:

               «A galinha é um artifício de que o ovo se serve para produzir outro ovo».

 

 Eis um mote para muitas glosas. Já li algures que até Aristóteles se pronunciou sobre o dilema, e terá concluído que a galinha antecedeu o ovo. Talvez, minha Princesa de mim, concluas o mesmo, pensando que Deus criou todos os seres, especialmente os vivos, entre eles os galináceos, dando-lhes os meios necessários à respetiva reprodução... Não vou discutir tal raciocínio, mas permitir-me-ás recordar-te de que, apesar de tantos cientistas se terem debruçado sobre esse facto-questão que é a origem da vida, e terem até concluído conjunções de fatores necessários à sua emergência, ainda ninguém explicou cabalmente a partir de quê e como elas se deram... Daí discorro que, «ovistas» ou «galinhistas», ficamos na mesma. Exceto no artifício... O evolucionismo propõe que um(a) pré-galináceo(a) tenha posto um ovo, o qual, em vez de pré-galinacear, tomou as suas liberdades e abriu-se em pinto. O criacionismo fecha-se então em copas, e clama que Deus só criou a vida, sem que saibamos bem como: ovo ou galinha, que importa? Assim, qualquer aborto voluntariamente provocado será um assassínio. E de artifício em artifício irá a nossa mente peregrinando.

 

   Todavia, e não sei bem porquê, para mim foi sempre mais intrigante a questão da questão, isto é, a razão de nos interrogarmos sobre o ovo, a galinha e a vida... afinal, Princesa, sobre o que somos, donde viemos, para onde vamos. Jovem adolescente, comprei certo dia um postal que reproduzia um quadro de Paul Gauguin, pintado em Tahiti, em que a questão aparece posta pela própria inocência desnuda de corpos humanos. Comecei então a interessar-me pelo que Teilhard de Chardin investigava como La Place de l´Homme dans la Nature, isto é, por tentar perceber, não só como surgira a vida, mas como dela nascera a inteligência. Primeiro, enquanto capacidade potencial de entender e, finalmente, como estado ou condição humana, ou seja, enquanto propriamente entendimento, visão organizada, explicação da pessoa e da sua circunstância, o mundo à sua volta.

 

   Nessa altura, fiz outra leitura da narrativa do Génesis sobre a expulsão do ser humano (homem e mulher) do Paraíso. Na verdade, deveu-se tal (e tão grande) castigo à desobediência ou violação do princípio divino de não poderem comer do fruto da árvore do conhecimento, pois assim se libertariam do estado original de inocência, e se poriam a caminho de uma nova condição: a de quem terá de padecer as torturas de sucessivas interrogações para ir tentando aproximar-se de um estado, conquistado a custas próprias e já não mais inocente, de participação do entendimento divino. Lê, Princesa de mim, este saboroso trecho bíblico (Génesis, 3, 4-11), que te traduzo a partir da resposta da serpente à afirmação de Eva de que «Nós podemos comer frutos das árvores do jardim, mas não da que está no meio do jardim, porque Deus disse: "Não comereis desse fruto, nem lhe tocareis, sob pena de morte!":

 

   A serpente replicou: "Nada disso, não ireis morrer! Mas Deus sabe que, no dia em que dele comerdes, se abrirão os vossos olhos e sereis como deuses que conhecem o bem e o mal". A mulher percebeu que o fruto da árvore era bom de comer e agradável à vista, e que aquela árvore era desejável para adquirirem o discernimento. Colheu um fruto e comeu. Também deu um a seu marido, que com ela estava, e ele comeu. Abriram-se então os olhos de ambos, e conheceram que estavam nus. Por isso ataram folhas de figueira para fazerem tangas. Ouviram os passos de Yahvé Deus, que passeava pelo jardim gozando a brisa, e o homem e sua mulher esconderam-se de Yahvé Deus, no meio das árvores do jardim. Yahvé Deus chamou pelo homem: "Onde estás?"  Ouvi os teus passos no jardim, respondeu o homem, e tive medo porque estou nu, e escondi-me. "E quem te disse que estavas nu? Queres dizer-me que comeste do fruto da árvore proibida?".

 

   Pessoalmente, gosto de continuar a leitura bíblica deste texto bem mais adiante, já no capítulo 12 do Génesis, 1, quando se fala da vocação de Abraão: Yahvé disse a Abraão: "Deixa o teu país, a tua parentela e a casa de teu pai, pelo país que te indicarei!" Teologicamente, penso eu, pode enraizar-se, neste passo, o início do discurso bíblico da Redenção, que desde logo surge, também, como aventura humana de regresso do exílio - tema que, aliás, vai estando presente, de várias formas e narrativas, em toda a Bíblia, incluindo na voz de Jesus, quando repetidamente fala do seu próprio regresso ao Pai. Condenados a ganhar o pão com o suor dos nossos rostos, também pela procura do conhecimento, em cumprimento da nossa vocação de descobridores, nos vamos chegando à visão final do princípio da vida e do percurso da história.

 

   Pesar-nos-á, entretanto e sempre, a sucessão de ovos e galinhas que vai pautando o andamento lento, por vezes sinuoso, ou mesmo hesitante entre tantos semáforos, do trânsito da nossa aprendizagem e conhecimento. Mas não esqueçamos que a própria ciência humana é um artifício, como galinha para ovo. E até acontece não sabermos, nem tampouco prevermos, o que sairá do ovo que tal galinha põe. A evolução da nossa ciência tem fases de desenvolvimento quase linear e previsível, enquanto se vai esgotando uma opção, um método, uma tecnologia. E também tem crises, ou tempos de rutura e mutação, quando se lhe abrem outros horizontes, aproximáveis por métodos diversos, exploráveis por tecnologias novas. Em vários campos do labor científico, desde a investigação do cancro à aventura espacial. Assim continua interrogando o pensarsentir humano, e será, quiçá, no tempo, o nosso modo de perseverar no ser que somos. A ciência não nos dá, creio que jamais dará, o ser, mas vai mantendo em andamento, de ovo para galinha e de galinha para ovo, este misterioso aparelho do nosso entendimento. É por fazê-lo que muitos cientistas se abrem à contemplação do mistério, aqui entendido como realidade presente no nosso horizonte, e que incessantemente interrogamos sem por agora chegarmos à resposta final, isto é, à que plenamente seja certeza que nos satisfaça.  Por aí também poderemos perceber que nenhuma religião consegue ser fábrica de certezas definitivas, mas que a fé pode alimentar as forças do nosso percurso em busca da verdade, por quanto possa ser esse sustento das coisas que hão de vir. A fé - aquela que nos anima de contemplação e perguntas e torna ser crente mais estimulante e laborioso do que ser ateu. A famosa frase «nunca encontrei a alma na ponta do meu bisturi» não está errada, está certa - mas também não serve de critério epistemológico. Tal como pretender-se que «ser cristão (e, acrescento eu, outro crente ou agnóstico ou ateu) é um risco e ser humano um grande risco» é uma banalidade pretensiosa, já que a condição humana é, evidentemente, uma condição inata e involuntária, enquanto qualquer opção religiosa ou filosófica, como todas as orientações que tomemos na vida, são opções pessoais e, nessa medida, arriscadas. Aliás, em qualquer caso, não se podem sobrepor os motivos: posso declarar-me cristão por receio ou temor, por tradição, educação ou necessidade de certezas abonadas, como por livre escolha de um caminho de descoberta. E todas essas opções, como todas as outras, são um risco assumido, nunca podem ser uma condição imposta.  Aqui e agora, a nossa inteligência padece das suas próprias limitações, e das da sua circunstância. Habitando o tempo e o espaço, é posta a funcionar no e com o mensurável. Assim me parece, atrevo-me a dizê-lo, um artifício natural - o qual é, evidentemente, condição paradoxal. Mas, na verdade, discorremos necessariamente no tempo e no espaço, categorias mentais artificiais que, todavia, surgiram como indispensáveis ao funcionamento intelectual do ser humano naturado. Ora, no infinito, como na eternidade, nem tempo nem espaço fazem qualquer sentido, pois apenas a imensidão será medida certa. Quando ouço falar de vida eterna - ou da sua negação - pensossinto sempre que, quer a imaginemos como este mundo que conhecemos finalmente despido de todo o mal, quer como fim definitivo de todos os nossos horizontes atuais, nos esquecemos, nessa fé ou na sua negação, de que a vida eterna não tem duração nem limite, habita algo que a nossa inteligência atual não é capaz de compreender: o Reino de Deus, já Jesus nos dizia, não é deste mundo, porque é imenso. E imenso quer precisamente dizer sem medida.

 

   A talho de fouce, recordo, Princesa de mim, como aquele dito de Jesus a Pilatos, que o interrogava, tem sido - até por muitos católicos - interpretado como se não enquadrasse neste mundo o Reino de justiça, amor e paz, reservado para o "outro mundo". Mas a Boa Nova ensina-nos que só neste tempo e nesta hora nos é dada a oportunidade de praticar esse amor do próximo que, de acordo com os relatos evangélicos das bem-aventuranças e do juízo final, será o critério de entrada de qualquer de nós no Reino do Imenso onde, sem constrangimentos, só a Vida está e, finalmente, é. Aliás, a esta carta que, alegremente encetada como glosa a uma frase do Umberto Eco, acabei por levar às portas de uma meditação especulativa, falta acrescentar a funda impressão, que já tantas vezes te confidenciei, em mim aberta e em mim deixada por pensarsentir, no caso da humana vida e morte, como entre esta e a vida que temos não há que procurar nem ovo nem galinha : ambos intimamente se confundem. Na verdade, a vida só nasce da morte depois da morte da vida, posto que, no seu início terrenal, esta é transmitida por outra vida. Ou, quiçá, em razão da necessidade fatal de gerar vidas que possam suceder a outras mortes futuras, já que também só neste mundo se faz história. Lembro sempre a assertividade de Georges Bataille: L´érotisme c´est l´affirmation de la vie jusque dans la mort... E, afinal, não poderemos nós dizer, parafraseando o começo do Evangelho de S. João, que no princípio era a Vida ? Noutra carta, talvez contigo me interrogue sobre quem nasce primeiro: se o beijo que o revela, ou o amor que o dá. Por alguma razão muitos de nós toda a vida se recordam do seu primeiro amor, do primeiro beijo. E alguns sussurrarão o refrão daquela tão simples canção do Georges Brassens: Jamais de la vie / on ne l´oubliera / la première fille / qu´on a pris dans ses bras... Foi esse beijo que deu vida ao amor, ou o amor que acendeu o beijo?

 

Camilo Maria

Camilo Martins de Oliveira