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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM

 

Minha Princesa de mim:

 

   Nesta sexta feira grisalha e um tanto quanto chuvosa e ventosa em que, neste ano de 2019, aterrou entre nós a celestial festa de Todos os Santos, as minhas ferrugens obrigaram-me a participar pela televisão na missa celebrada na Igreja de Santa Beatriz da Silva, em Lisboa. Eis um dia de alegria muito íntima - tão íntima que me faz chorar - e todos os anos a comemoro com o todo de mim, pois que é memória não de mortos mas de vivos, alguns dos quais foram habitantes do meu sangue antigo, muito antes de eu mesmo saber que por eles existo, outros da minha vida remota já ou próxima ainda, das minhas casas, amizades e amores, encantos e desilusões, inquietações, anseios e interrogações... E mais tantos, tantos, com quem partilhei ou quis partilhar a minha fé, sem contar com todos os de mim ignorados companheiros, que creio sempre amigos, não sei, mas necessariamente comungantes da mesma humana condição.

 

   Gosto deste amor universal que nos abraça na festa dos vivos, e tão solar e feliz me faz sorrir em dia aparentemente cinzento: reúno-me com a vida que não vejo agora -  com a dos que, incluindo meu irmão mais novo, saíram este ano da nossa vista -  e essa miríade de incógnitos de mim, agora junta, na memória presente do amor eterno, à de todos aqueles mais próximos cujas lembranças, dia após dia, me povoam de afetos a alma.

 

   Eis-me assim a pensarsentir, simultaneamente, o desprendimento e o reencontro, como se estivesse em Antan, o lugar situado no meio do universo e centro dessa fábula e parábola que é o maravilhoso livro da polaca Olga Tocarczuk (Nobel da Literatura 2019), intitulado - traduzo da versão francesa - Deus , o tempo, os homens e os anjos...

 

   No centro de Antan, Deus elevou uma colina que todos os anos é invadida por uma nuvem de besouros. Por isso a gente lhe chama a Montanha dos Besouros. Porque Deus trata de criar, e o homem de inventar nomes. Mais adiante, quase a chegar ao fim do livro, a escritora conta-nos, em curto trecho intitulado O Tempo do Jogo:

 

   «No sétimo mundo, os descendentes dos primeiros homens viajaram de país em país e acabaram por chegar a um vale mirífico. "Vamos lá, disseram eles, vamos construir uma cidade e uma torre que atinja o céu, para permanecermos um só povo e não nos deixarmos dispersar por Deus..." Logo se entregaram ao trabalho, juntaram pedras e utilizaram alcatrão como cimento. Assim edificaram uma cidade imensa, no meio da qual se erguia a torre. Acabou por atingir tal altura que, lá de cima, se conseguia ver o que estava para além dos oito mundos. Quando o céu estava limpo, os que trabalhavam lá em cima faziam uma pala com as mãos - para não serem cegos pelo sol - e conseguiam enxergar os pés de Deus, tal como o corpo monstruoso da serpente devoradora do tempo.

 

   Com a ajuda de paus, alguns deles tentavam sondar o espaço acima das suas cabeças.

 

   Deus observava-os com inquietação e pensava consigo: "Enquanto forem um só povo e falarem uma só língua, só poderão agir à sua maneira... Vou confundir as suas línguas e encerrá-los dentro deles próprios. Farei com que já não se entendam entre eles. E então se levantarão uns contra os outros. E Me deixarão, a Mim, em paz." E Deus fez o que tinha decidido.

 

   Os homens dispersaram-se pelos quatro cantos do mundo, e tornaram-se inimigos uns dos outros. Mas guardaram a lembrança do que tinham visto. Ora, aquele que viu a cerca do mundo sofre mais do que ninguém a sua condição de prisioneiro».

 

   Já no primeiro capítulo - O Tempo de Antan - está escrito, todavia, que Antan está rodeada por dois rios: o Negro, profundo e sombrio, que se junta, no moinho, ao Branco, pouco fundo e vivo. Então se encontram os seus cursos, primeiro "lado a lado, indecisos, intimidados por essa aproximação tão aguardada". Logo se "precipitam um no outro e se perdem no seu abraço. E o rio que dali nasce já não é Branco nem Negro, mas é poderoso e faz girar sem pena a roda do moinho". Será porque os quatro pontos cardeais de Antan estão guardados pelos arcanjos Rafael, Gabriel, Miguel e Uriel, como nos diz o conto? Ou antes não estará Olga Tokarczuk a evocar uma revelação apocalíptica (perdoa-me a forma enfática) de São João, lida na missa de hoje? Assim:

 

   Eu, João, vi um anjo que subia do Nascente, trazendo o selo do Deus vivo. Ele clamou em voz alta aos quatro anjos a quem foi dado o poder de causar dano à terra e ao mar: «Não causeis dano à terra, nem ao mar, nem às árvores, até que tenhamos marcado na fronte os servos do nosso Deus.» E ouvi o número dos que tinham sido marcados: cento e quarenta e quatro mil, de todas as tribos dos filhos de Israel. Depois disto, vi uma multidão imensa, que ninguém podia contar, de todas as nações, tribos, povos e línguas. Estavam de pé diante do trono e na presença do Cordeiro, vestidos com túnicas brancas e de palmas na mão. E clamavam em alta voz: «A salvação ao nosso Deus, que está sentado no trono, e ao Cordeiro.»

 

   Esses todos, diz-nos depois o mesmo São João, "são os que vieram da grande tribulação, cujas túnicas foram lavadas e branqueadas pelo sangue do Cordeiro."

 

   Só de pensarmos nele já nos faz bem o amor universal.

 

Camilo Maria

  
Camilo Martins de Oliveira