CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM
Minha Princesa de mim:
Achei, num destes meus passeios por livros e mudanças de ares, um trecho curioso de uma homónima de minha Mãe, Germaine Necker, mais conhecida por baronesa ou Madame de Staël-Holstein, constante do seu De la Littérature, publicado em 1800:
A glória dos grandes homens é património de um povo livre. Depois da morte deles, todo o povo herda. O amor da pátria é só composto de lembranças.
Aconteceu-me esta manhã, a 4 de dezembro de 2019, quando sozinho começava, pelo sexagésimo ano seguinte à morte de meu Pai, a celebrar a sua memória, neste dia do seu aniversário natalício. Assim vou vivendo estes meus hábitos de perenes encontros.
Assim também, com sucessivos obituários, se vai enchendo este meu calendário litúrgico, deixando-me a cismar que à crescente falta de dias livres de celebrações próprias, chamados feriais, corresponderá certamente uma qualquer contagem decrescente do meu tempo presente. Não me perturba, até me faz sorrir com aquela pontinha de ironia que, graças a Deus e sem mérito meu, me foi apimentando o paladar da vida. Mas também receio que as minhas repetidas elucubrações à volta dos temas da presença e da ausência, do ser que, para além da sua circunstância - em que se percebe como relação -, ainda não sabe bem o que é, a não ser que "está p´ràqui", te possam fatigar a leitura destas cartas. Apesar da fé que sempre nos alimenta, porque, na humildade da nossa condição, e conhecendo a nossa ignorância, aguardamos o Apocalipse, a revelação final de Quem é tudo em todos.
Entretanto, lá se vão paulatinamente convertendo e sobrevivendo em lembranças os nossos afetos, transformando os nossos convívios em contas de um rosário de saudades - que se rezam baixinho e na nossa alma ganham uma grandeza nova. Sem darmos bem por isso, vamos nós também trilhando já caminhos de outra vida e entrando num não-espaço-nem-tempo, absorvidos por poderosa luz que nos acende olhares de infinita intimidade. Sem sabermos bem por onde e aonde vamos, estamos certos de percorrer o itinerário que nos conduz ao segredo do nosso encontro.
E aqui recordo agora um poema de São João da Cruz, que traduzi e te enviei há poucos anos atrás, e o blogue do CNC publicou no 1º de janeiro de 2017: Noite Escura da Alma. Afinal, talvez nos fale desse percurso que vamos fazendo pela margem calada da nossa vida. Fugindo da noite escura para a claridade adivinhada de um novo dia... Mas a luz que ilumina esse caminho interior e secreto é, diz-nos o místico carmelita, a chama do coração que em nós arde, mais forte e clara que o sol meridiano. Silenciosamente irá, na noite escura, a nossa alma repousar entre açucenas. Itinerário que nos leva ao incessante convívio com esses vivos a que chamamos defuntos. Falo de convívio, e bem digo, Princesa de mim, posto que com eles também eu vou vivendo, deles recebendo o alento para operar, com os outros mais habitantes deste ainda tempo finito em que me encontro, obras de justiça e de paz que só a alegria de uma esperança comum poderá sustentar. Eis a nossa fé. A nossa comunhão.
Camilo Maria
Camilo Martins de Oliveira