CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM
Minha Princesa de mim:
Há semanas que não te escrevo. Além de distraído por outras cismas, tenho sofrido repetidas cargas das minhas maleitas álgicas, perco sono e fico prostrado pelo cansaço. Vale-me o amparo de alguma música, desta feita - e curiosamente - a de compositores da última década do século XIX e primeiras do XX, de Debussy e Satie a Ravel e Stravinsky, sem esquecer a escola de Viena... E vou navegando por mares poéticos, por Paul Claudel e os japoneses, e ainda - talvez sobretudo - pelo imenso e forte oceano do nosso frei José Augusto Mourão, cuja poesia é, ela própria, uma liturgia da Palavra que o sopro do Espírito vai enfunando em nós. Tornando-nos sempre bem presente a saudade vital que é o fado da nossa humana condição. Citando um dos títulos da obra de frei José Augusto, afirmo que a sua poesia é Dizer Deus ao (des)abrigo do nome.
Topamos por aí com "poetas" medíocres, carreiristas de encómios, que vão encobrindo a indigência dos seus escritos e discursos com citações frequentemente deslocadas do seu sentido próprio, para apenas decorarem a moldura do retrato em que se miram ao espelho do charco sobre que se debruçam com alguma "flor de cultura". Talvez distraídos daqueles versos de J. A. Mourão, insertos no seu protestatio et confessio:
à banalização do mal eu digo não
à tecnologia das próteses e ao mercado
que conforta em nós Narciso, digo não
Afinal, o Poeta mesmo, aquele que vive como dom, como promessa e espera, a liturgia essencial da Palavra sabe as horas pelos relógios da fé:
A nós que agora vemos em espelho
aguardando o face a face do teu Dia
que o fogo do mal não nos devore os olhos
nem a ira queime a compaixão que falta
mas que a tua paz nos mostre o possível do mundo
o amanhecer da graça e da beleza
que não recuemos diante da tua sombra
nem nos contem as horas os relógios da fé
dá a vigilância e o fervor à nossa vida
a atenção ao escondido da esperança
e a resistência às tentações da transparência
para o instante e o agora do mundo
Encontrei neste poema uma oração para todos os humanos em todos os dias deste tempo difícil e tão incerto. Bem hajas, frei José Augusto Mourão!
Camilo Martins de Oliveira
Obs: Reposição de texto publicado em 21.06.2020 neste blogue.