CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM / EM REBUSCA DO JAPÃO XXIV
Minha Princesa de mim:
Ando a viver todos os dias com um fantasma. Não me assusta nem faz por isso, tampouco emite sons lúgubres, ou se ri de mim à socapa. Nem sequer se esvanece e desvanece, é quase silencioso, não se faz notar, nem se esconde. Só um cego olhar ausente, desatento a tudo, nos deixa adivinhar que tão ensimesmada peregrinação entre a gente é o vagar vadio de quem já se nos não prende. Anda alhures, talvez não saiba por onde, como não sabe que é por aqui que me aparece. Acontece-lhe esquecer o meu nome, como o de muitas coisas deste mundo que, cada vez mais, sente como detestados invasores do labiríntico universo interior em que arreganhadamente tenta resguardar-se - pois no seu sonho sente sempre salva a vida. A demência é uma forma de sobrevivência que imagina fantasmas. Mas que sobreviverá, em si mesmo, do próprio fantasma que esta manhã acordou no quarto que lhe tem sido familiar, sem saber onde estava? Desde então só se passeia pela casa que sempre lhe pareceu grande, e hoje lhe é enorme, dizendo a cada passo: «Não me lembro de nada, não me lembro de nada...» Será tão somente uma nebulosa consciência de que non memoro, ergo sum («Não me lembro, logo sou»)?
No Japão, o teatro nô traz à ribalta os espíritos das coisas e os atores desconhecidos de antigas histórias fantásticas. A obra literária de Ueda Akinari (1734-1809), designadamente a intitulada Ugetsu monogatari (Contos de Chuva e Lua) inspira-se muito no nô, desde logo no próprio título: Ugetsu (chuva e lua) é um termo carregado de sentido para um japonês: acaba de chover e a lua está semi escondida na bruma, tempo ideal para aparições. Aparições que são criações ou artifícios da memória ou da falta dela, ou ainda, como se canta no nosso hino nacional, vozes que se sentem entre as brumas da memória... Quando lembramos um ente querido que já se morreu, reinventamo-lo - por isso abraçamos a persona revivida mais do que, na verdade, a pessoa que saiu da cena desta vida e dela está agora ausente. Quando "convivemos" com o ser vago e vagabundo que se passeia ainda pelos caminhos desta nossa vida, é conscientemente que atingimos uma pessoa aparentemente presente, mas já dramaticamente ausente da comunicação possível em tempo próprio.
O conto A Casa nos caniçais, de Akinari, que a seguir resumo, ilustra bem o que acima tento dizer. Os trechos em itálico são traduções de textos autênticos do autor japonês:
O carácter indolente de Katsushiro, nascido numa família de abastados proprietários rurais, leva-o, em tempos de guerras feudais, à beira da miséria. Para se restaurar, busca mudança em circunstância de mudanças e, graças ao apoio de antiga relação, torna-se negociante em sedas de Ashikaga, o que o leva a ausentar-se de casa e a separar-se provisoriamente de Miyagi, sua bela e fiel mulher. A turbulência bélica e social da época vai-se alastrando e acaba por afastar os tão unidos e amantes cônjuges, obrigando-os a um isolamento mútuo, sem convívio nem notícias. Até que, movido pela solidão e pela saudade, Katsushiro se decide a enfrentar os riscos inerentes à circunstância em que vivem: põe-se a caminho de casa, em esperançosa busca da mulher amada. Mesmo supondo que esta se tivesse tornado numa habitante das regiões subterrâneas, e já não fosse deste mundo, impunha-se encontrar-lhe o rasto e erigir-lhe, pelo menos, um memorial funerário...
Àquela hora, já o sol se tinha submergido no ocidente. Sob as nuvens de chuva prestes a cair, reinava a sombra, mas disse para consigo que não poderia perder-se, pois estava numa aldeia que muito tempo habitara; continuava a andar, afastando as ervas de verão. A velha ponte desmoronara-se no leito do rio e os cascos dos potros já ali não ressoavam. Os campos, desleixados, voltaram a ser baldios e já não se distinguiam as sendas de antanho. As moradias dos que lá tinham vivido já não existiam. Aqui e além, algumas raras casas que subsistiam pareciam habitadas, mas já não se assemelhavam ao que tinham sido. Assim se quedava ele, perplexo, perguntando-se em qual daquelas casas teria morado, quando, a mais ou menos vinte passos, descobriu, à luz das estrelas que as nuvens filtravam, um pinheiro rasgado por um raio, que dominava ao redor. Era certamente aquele que marcava a sua casa e, em espontâneo movimento de alegria, avançou: a casa nada sofrera. Parecia que alguém a habitava, pelas frinchas da velha porta cintilava a luz de uma lâmpada: estaria ali um estrangeiro? E se, por acaso, fosse Ela que ali estivesse? Ao pensá-lo, sentiu o coração bater com mais força, aproximou-se do portão e tossiu para se anunciar. Lá dentro, alguém sentiu a sua presença e perguntou desconfiadamente: «Quem está aí?» Apesar de envelhecida, era certamente a voz de sua mulher... Estaria ele a sonhar? Com o coração em angústia, respondeu: «Sou eu! Eis-me de volta! Tal como dantes, continuais a habitar, sozinha, esta terra coberta de caniços... É admirável! Reconhecendo-lhe a voz, logo ela lhe abriu a porta: toda de negro e coberta de sujidade, de olhos cavos e cabelos entrançados a cair-lhe pelas costas, não lhe pareceu que estivesse ali a mulher de outrora. Esta, ao ver o marido, nada disse, desfez-se em lágrimas...
Entrecortada de choros e suspiros, foi longa a conversa da saudade e do reencontro, da alegria e da dor, da humanidade e do sonho. Até que, para lhe acariciar um soluço, ele lhe disse: «É sempre breve a noite»... e deitaram-se lado a lado. Narrando o decurso da noite, Ueda Akinari dá o passo do sono para o despertar, do sonhado para o experimentado, do real subjetivo para o real objetivo, ou seja, do que se vê por dentro apenas para o que se julga estar a observar. Muito cansado da jornada, Katsushiro dormiu profundamente, e só de manhã, quando a chuva vem refrescar-lhe o rosto e a luz de alva lhe vai abrindo os olhos, perceberá que não está deitado em casa alguma, que não há qualquer porta de entrada ou saída nem, pior ainda, está a seu lado a mulher que ele julgara ali deitada... Estava ou era invisível...
Ou nem uma coisa nem outra. Talvez apenas fosse a solidão feita pessoa e fantasma, ou persona e máscara de uma peça de Nô. Como se o espírito simultaneamente habitasse e viajasse entre dois mundos.
Camilo Maria
Camilo Martins de Oliveira