CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM / EM REBUSCA DO JAPÃO XIX
Minha Princesa de mim:
Como bem sabes, desde muito jovem convivi com os livros e o pensamento de Ortega y Gasset. E fui guardando e remoendo certas ideias que me enchiam o coração. De algumas delas amiúde te falei, sobretudo quando as surpreendia na liça das minhas cogitações. Mas creio que nunca te disse algo especial que me ocorreu aquando da minha primeira visita ao Japão, há décadas.
Um esforçado professor universitário nipónico procurava explicar-me a "timidez" de pronomes pessoais no falar japonês, recorrendo a conceitos e exemplos - de que já tratei noutras cartas e textos meus - enraizados numa visão abrangente do mundo, do humano e da natureza. Com o desenrolar das explanações, ia-se acentuando em mim uma qualquer impressão de "já visto", mas de pernas para o ar. Ao fim e ao cabo, ocorreu-me então que a noção "gassetiana" de que yo soy yo y mi circunstancia, se poderia traduzir, em japonês, por yo soy mi circunstancia y yo... Pouco ou nada sabendo que, quatro décadas mais tarde, acharia em Lévi-Strauss, antropólogo que eu pouco lera antes, uma interessante interpretação do "mistério". Descobri-a relendo o texto de uma conferência que ele proferiu em Kyoto, a 9 de março de 1988, sobre o tema de La Place de la Culture Japonaise dans le Monde, de que seguidamente traduzo alguns trechos.
Os filósofos ocidentais veem duas diferenças maiores entre o pensamento oriental e o deles. A seus olhos, o pensamento oriental caracteriza-se por uma dupla recusa. Primeiro, a recusa do sujeito, já que, de modos diversos, o hinduísmo, o taoísmo, o budismo negam o que, para o Ocidente, constitui uma evidência elementar: o eu, cujo carácter ilusório aquelas doutrinas insistem em demonstrar. Para elas, cada ser mais não é do que uma montagem provisória de fenómenos biológicos e psíquicos, sem elemento duradouro como é um si mesmo: aparência vã, inelutavelmente destinada a dissolver-se.
A segunda recusa é a do discurso. Desde os gregos que o Ocidente julga que o homem tem a faculdade de apreender o mundo, utilizando a linguagem ao serviço da razão: um discurso bem construído coincide com a realidade, atinge e reflete a ordem das coisas. Pelo contrário, segundo o conceito oriental, qualquer discurso está irremediavelmente inadequado ao real. A natureza essencial do mundo - a supor-se que tal noção tenha sentido - escapa-nos. Transcende as nossas faculdades de expressão e de reflexão. Dela nada sabemos, sendo assim melhor que nada digamos. [Lembrando a simetria, ou inversão de imagem, de que já vínhamos falando, Princesa de mim, ocorre-me que o próprio São Tomás de Aquino, Doutor da Igreja - e estrela da escolástica - já dizia, no século XIII, que de Deus só não sabia nada. Na verdade, da Sua existência, avançou provas várias, racionais. Mas sabia e reconhecia que, da Sua essência, nada sabia...].
A ambas as recusas [do sujeito e do discurso], reage o Japão de modo inteiramente original. Não dá ao sujeito uma importância comparável à que o Ocidente lhe atribui, nem dele faz o obrigatório ponto de partida duma reflexão filosófica, nem de qualquer tentativa de reconstrução do mundo pelo pensamento. Houve mesmo quem dissesse que o «Penso, logo existo», de Descartes é, em rigor, intraduzível em japonês...
Mas também não parece que o pensamento japonês aniquile o sujeito: antes fará, dele, não uma causa, mas um resultado. A filosofia ocidental do sujeito é centrífuga, já que tudo parte dele. Mas o conceito japonês do sujeito é centrípeto. Tal como a sintaxe japonesa constrói as frases por determinações sucessivas, que vão do geral ao particular, o pensamento japonês põe o sujeito na meta: ele resulta do modo como os grupos sociais e profissionais, cada vez mais restritos, encaixam uns nos outros. O sujeito volta assim a encontrar uma realidade, como se fosse o último lugar em que se refletem as suas pertenças.
Este modo de construir o sujeito pelo lado de fora também serve à língua, propensa a evitar o pronome pessoal, tal como à estrutura social em que a «consciência de si» (jigaishi) se exprime no e pelo sentimento que cada um, mesmo o mais humilde, tem de participar numa obra coletiva. Até ferramentas de conceção chinesa, como certas serras e tipos de plainas, só foram adotadas no Japão, há seis ou sete séculos, com um modo de emprego invertido: o artífice puxa a si a ferramenta em vez de a empurrar para a frente. Situar-se à chegada, e não à partida, de uma ação exercida sobre a matéria revela profunda propensão a definir-se pelo exterior, em função do lugar que se ocupa numa família, num grupo profissional, em dado meio geográfico, ou, de modo mais geral, no país e na sociedade. Dir-se-ia que o Japão revirou, como se revira uma luva, a recusa do sujeito, para extrair dessa negação um efeito positivo e aí encontrar um princípio dinâmico de organização social que ponha esta também a salvo da renúncia metafísica das religiões orientais, da sociologia estática do confucionismo e do atomismo a que o primado do eu expõe as sociedades ocidentais.
A resposta japonesa à segunda recusa é de género diferente. O Japão operou uma completa reviravolta de um sistema de pensamento: posto pelo Ocidente na presença de outro sistema, retém o que lhe convém e afasta o resto. Visto que, longe de repudiar em bloco o logos, tal como os gregos o entendiam - isto é, enquanto correspondência da verdade racional ao mundo - o Japão tomou resolutamente partido pelo conhecimento científico, onde, aliás, vem a ocupar um lugar de primeiro plano.
Seja como for, proponho-me agora sublinhar a importância pragmática de pensarsentirmos o indivíduo, o eu, não como centro mas como parte de um conjunto solidário, necessário ontologicamente. O ser humano, e não só, é um ser em relação, não se explica, nem sequer existe por si e para si. Ao cartesiano cogito, ergo sum, prefiro o gassetiano yo soy yo y mi circunstancia, posto que, sendo arbitrária a ordem dos fatores, o mesmo é dizer que yo soy mi circunstancia y yo... Aliás, as últimas encíclicas do papa Francisco lembram à nossa cultura hodierna o dever de nos pensarsentir prioritariamente na fraternidade da nossa humanidade comum e com a terra, nossa mãe e abrigo. Assim também me ensinou, ao longo destes anos todos, o meu convívio japonês.
Camilo Maria
Camilo Martins de Oliveira