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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS PARA A OUTRA MARGEM


Secreta Princesa de mim:


  A certo passo de A Ilustre Casa de Ramires, o protagonista, Gonçalo Mendes Ramires, confessa: «Gosto, gosto muito de crianças, até de criancinhas de mama. As crianças são os únicos seres divinos que a nossa pobre humanidade conhece... Os outros anjos, os de asas, nunca aparecem. Os santos, depois de santos, ficam na Bem-Aventurança a preguiçar, ninguém mais os enxerga. E, para concebermos uma ideia das coisas do Céu, só temos realmente as criancinhas... Tal trecho algo me diz sobre a sensibilidade do seu autor, a tentar sempre uma sublimação das realidades factuais que nos rodeiam pelo apreço sincero daquelas que lhe tocam uma secreta corda do coração...


   Pensossinto que Eça de Queiroz, além e apesar de tudo, é muito portuguesmente um emotivo ou - se assim preferires, minha silenciosa Princesa - um muito grande sentimental. Aliás, quase no termo da sua Ilustre Casa de Ramires, põe na boca de um dos amigos de Gonçalo, o Administrador João Gouveia, esta sentença: «Talvez se riam, mas eu sustento a semelhança. Aquele todo de Gonçalo, a franqueza, a doçura, a bondade, a imensa bondade que notou o Sr. Padre Soeiro... Os fogachos e entusiasmos que acabam logo em fumo, e simultaneamente muita persistência, muito afeto, quando se fila à sua ideia... A generosidade, o desleixo... [...]...Assim todo completo, com o bem, com o mal, sabem vocês quem ele me lembra?


   - Quem?
   - Portugal.


   
Cito assim, porque o amor às crianças, pela sua espontânea ternura, corre sempre o risco de ser como fogacho que logo acaba em fumo, fumo esse que, ainda por cima, contribui para o nosso esquecimento da realidade pungente de centenas de milhares, quiçá milhões, de pequeninos por esse mundo fora. Acende-se muitas vezes em mim a imagem de carinhas aflitas de fome e outros sofrimentos, recordadas em fotos da imprensa ou reportagens das televisões. Magoam-me e doem até às lágrimas aqueles olhos suplicantes que dão aos rostos meninos a expressão trágica das vidas esquecidas e abandonadas, mas já sem queixas e ainda não sabendo o que é raiva e revolta, nem sequer acusação outra para além daquele silêncio com que a própria morte nos interpela.


   Quedo-me perplexo, sabendo a inutilidade do meu desgosto, a fraqueza da minha compaixão. Poderei contribuir para auxílios de inúmeras organizações de socorro, nacionais e internacionais, confessionais ou anónimas, públicas e privadas; tal como poderei publicar alertas, análises e textos críticos; e não me esquecerei de rezar, levando até Deus (mistério que nos contempla e contemplamos) a cena dolorosa da confrontação, em humanidade, de egoísmos na abundância de bens com carências em tão grande desespero de meios...


   Mas apenas sei que, sem a mobilização coletiva de vontades políticas humanitárias, e consequente transformação ou conversão de um sistema cujo próprio funcionamento vota fatalmente ao ostracismo milhões de vidas - às quais negamos a dignidade e a justiça que são seus próprios direitos inalienáveis - nada poderá obter aquela verdade densa que dá existência ao próprio bem. Lembra S. Paulo na sua primeira epístola aos coríntios:


   Se nas línguas dos humanos e dos anjos eu falar, mas amor não tenho, bronze ecoante ou címbalo ruidoso me tornei.


   O amor do próximo, ou caridade, é edificação do Reino de Deus já na nossa vida presente, antes de seguirmos - como tu já atravessaste, Princesa de mim - para a outra margem.


   
Como e quando aprenderei eu a caridade? Não só na ocasião e dimensão do meu quotidiano tangível, mas no empenho e na partilha social e política, que procure abrir novos horizontes e transformar os sistemas instalados e os aparelhos que nos encerram num egoísmo cego... Vocação a que é hoje tanto mais difícil corresponder, quanto a cultura contemporânea das sociedades ocidentais de raiz cristã se converteu aos "encantos" do apelo de um individualismo materialista alheio ao sentido  da busca do outro que, afinal, somos sempre nós também. Será que calha mantermo-nos no barulho dos címbalos importunos (ou sedutores?)  que nos circundam, e baixarmos os braços como calistos azarentos, ou será ainda possível ir convertendo a cultura e os sistemas com seus aparelhos? Saberás tu responder-me, Princesa, da margem de lá, onde já chegaste?

 

Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira