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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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COM ÉMILE ZOLA E GEORGES BERNANOS

1.   C A R T A   P R I M E I R A

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Minha Princesa de mim:

   Será por ter lido aquele trecho da epístola de São Tiago ( A religião pura e sem mancha, aos olhos de Deus, nosso Pai, consiste em visitar os órfãos e as viúvas nas suas tribulações e conservar-se limpo do contágio do mundo ), que me ocorreu este passeio com Zola e Bernanos? Ou, por estranho que pareça, mas quiçá possas sentir ao longo destas minhas cartas, como foi possível eu caminhar de mãos dadas  -  e sem saber a quem dava a esquerda ou a direita  -  com dois grandes escritores, bem diferentes, dos tais que fui relendo desde a minha juventude, sendo um, além de arauto do naturalismo literário, um republicano laico, corajosamente envolvido em causas políticas de sua convicção, defensor do capitão Dreyfus contra a conspiração antijudaica que o condenara, e, o outro, católico conservador, que foi sequaz de Charles Maurras e admirador desse líder do antissemitismo francês, Edouard Adolphe Drumont que, no seu jornal La Libre Parole, foi acusador de Dreyfus? Zola viveu entre nós de 1840 a 1902, o seu libelo J´Accuse, em defesa do militar judo-francês, foi publicado no Aurore de 13 de Janeiro de 1898, oito anos antes da reabilitação judicial e reintegração de Dreyfus no exército francês, em 1906.  Bernanos nasceu em 1888 e morreu em 1948, trinta e cinco anos depois de ter assinado, no jornal integralista L´Avant-Garde de Normandie, um artigo intitulado Zola ou l´Idéal, no qual, ainda que menosprezando o romancista, a quem, aliás, se refere como ao "Veneziano" (designação que os nacionalistas franceses, na senda de Barrès, utilizavam para sugerir que, sendo de ascendência transalpina, Zola não poderia ser um autêntico patriota francês), fala de uma homenagem que, ao mesmo escritor republicano, membros da juventude laica tinham querido prestar em Paris: Podemos rir-nos desses jovens devotos que, no domingo, no Grand Palais, procuravam um Deus: concedo que são estúpidos, mas mostram fervor: procuram, fora de si mesmos, um ideal a servir, e um mestre que o incarne... Reconhece-se aí a vocação  --  e o respeito dela nos outros  --  do homem que se supera por esse olhar acima ou além dele.  Ainda que, quiçá por maior afinidade espiritual, eu possa preferir Bernanos a Zola, em ambos admiro o amor à verdade, a coragem, ou ousadia não convencional, na procura da justiça --  precisamente pela atenção aos injustiçados, que em Bernanos profundamente se identifica com essa revolta que é a compaixão de Cristo. Monárquico, aproximar-se-á da Action Française, como que por nostalgia da ordem histórica que construiu a França; católico, não romperá com esse movimento, nem com Charles Maurras, quando o mesmo é condenado pela Igreja, em 1926, mas fá-lo-á depois, por considerar que o nacionalismo integralista deste e o seu crescente apoio aos fascismos europeus violam o espírito tradicional do próprio pacto monárquico. Confessará : Não foi o pensamento do Sr. Ch. Maurras que me ligou à Monarquia. Eu nunca fui republicano. Aliás, muito antes dessa ruptura, ocorrida em Maio de 1932, Bernanos tivera de comparecer perante o "conselho de guerra" da Action Française, por ter apoiado, independentemente, uma tentativa de restauração da monarquia em Portugal... em 1912!   

Tal independência deve-se à sua profunda fidelidade aos superiores valores da sua fé cristã, bem como à sua Igreja católica e à monarquia histórica, em cujas tradições ele foi sempre inspirando o seu humanismo. Só assim se explica também a sua admiração por Édouard Drumont, que ele tanto cita no título III (Au regime de la viande crue) do seu contestatário La Grande Peur des bien-pensants, onde encontramos os primeiros fundamentos de Les Grands Cimetières sous la lune, obra em que Bernanos - que, de início, simpatizara com o movimento nacionalista espanhol de Primo de Rivera, e até tinha um filho (Yves) na Falange - se insurge contra as repressões perpetradas pelas forças falangistas, designadamente a partir do esmagamento, em Outubro de 1934, pela guardia civil e os mouros do general Lopez Ochoa, da insurreição popular e comuna das Astúrias. Aí, chegará mesmo a escrever, com atrevida, violenta, ironia: Excelências, Vossas Senhorias definiram perfeitamente as condições da Ordem Cristã. E mesmo ao ler-vos, compreendemos muito bem que a pobre gente se torne comunista. Tal mensagem dirigia-se à hierarquia da Igreja espanhola  -  que ia abençoando e absolvendo todas as campanhas e represálias anti bolchevistas e anarquistas (incluindo as que, pela sua desumanidade vitimavam inocentes) - era um grito sentido de revolta de um coração acima de tudo cristão de verdade.. Pelas mesmas razões, seu filho Yves se desilude da falange e a abandonará. Mas Bernanos, já antes, naquele título III de La Grande Peur estabelecera um paralelo com a Comuna de Paris (1871), por onde andou, observando e escandalizando-se, aquele antissemita da direita dura que foi Drumont, para quem, aliás, a grande beneficiária da "Revolução" fora a nova burguesia que, depois de espoliar dos seus bens a Igreja e a nobreza histórica, explorava e reprimia a plebe. Vejamos alguns dos seus textos, transcritos por Bernanos: Não foi a Burguesia que fez passar, para cima da colectividade, todos os encargos que dantes incidiam sobre as propriedades que ela adquirira por alguns papeis amarrotados? A remuneração do clero, a assistência pública, a instrução primária, todos os serviços que outrora eram pagos pelas propriedades vendidas durante a Revolução recaíam sobre a maioria, e os compradores de bens nacionais ficavam com os domínios, enquanto o Estado tomava para si as obrigações, isto é, as punha às costas de todos os cidadãos...   
...
 Deus disse ao homem: «Ganharás o teu pão com o suor do teu rosto». Não lhe disse: «Ganharás pelo teu trabalho, não só o pão, mas os prazeres, os deboches, o luxo, os carros, as equipagens de caça dos Schneider, dos Halphen, dos Menier». Disse ao homem: «Transpirarás»  --  o que, afinal, é suportável, mas não lhe disse: «Viverás fechado numa atmosfera mortífera, esgotarás as forças do teu corpo, esvaziarás as entranhas e queimarás o sangue para produzir açúcar ou algodão».  E Drumont já denuncia a obsessão da produtividade, esse nosso conhecido vício de considerar o homem como sendo, sobretudo, um factor de produção. A nossa boa e santa Madre Igreja, encarregada por Nosso Senhor Jesus Cristo de ser uma providência visível na terra e de organizar tudo pelo melhor, tinha ainda, enquanto pôde, suavizado na prática a execução da lei de Deus. Meiga condutora das almas, e simultaneamente governanta vigilante das coisas temporais, nunca teria permitido que o trabalho ganhasse o carácter que hoje lhe vemos. Só procurava ocasiões para dar férias e feriados; primeiro, tinha os seus cinquenta e dois domingos, depois os dias santos, as romarias. Íamos ao túmulo de S. Germano, S. Lopo, Sto. Humberto, conforme a região. Bebíamos ao altar o vinho de S. Remígio, que torna as mulheres fecundas, e, como ainda hoje se faz no Auvergne, dançava-se na estalagem ou no prado, depois da romaria. O marido, de regresso a casa, entretinha-se honestamente com a mulher e fazia-lhe filhos lindos. O desenvolvimento da nova burguesia pós revolucionária, oportunista e endinheirável, industrial, banqueira e camaleónica, é assunto da grande literatura francesa do século XIX, de Balzac a Zola, passando por Flaubert e outros. Na sucessão da Revolução de 1789 e do terror, inscreveram-se repúblicas, impérios e restaurações monárquicas, sobre um fundo de profundas mutações sociais e demográficas, de afrontamentos ideológicos, políticos e outros: conservadores e contestatários, monárquicos e republicanos, católicos e anticlericais, religiosos e maçons, agnósticos ou ateus, etc.. Foi o século de Proudhon, Marx, S. Vicente de Paula, Pio IX (Syllabus) e Leão XIII (Rerum Novarum), Bismarck e Garibaldi, da revolução industrial e da fé científica, da agonia do antigo regime, da desarmonia do campo e da cidade... A saga dos Rougon-Macquart, do Zola, reflecte isso tudo pela perspectiva do naturalismo, pela óptica da hereditariedade fisiológica e pelo darwinismo social. Mas tem passos de extrema ternura por pessoas humanas e de sentido protesto contra o seu desamparo. Já nos seus esboçados Portraits de prêtres, o escritor  --  que o Vaticano recusou receber, mesmo com Leão XIII  --  manifesta como que saudade da figura do padre, pastor bondoso e bem intencionado, em que ele já não acredita, por considerar que as atribulações sociais e a Igreja aliada aos grandes do mundo a condenaram a desaparecer. Hoje em dia, como sabes, Princesa, muitos, nessa mesma Igreja, reconhecem os benefícios que para ela advieram da sua separação do Estado, e vão paulatinamente celebrando as bem-aventuranças, o abraço aos desamparados, esse supremo valor da compaixão com Cristo, que não é de direita, nem de esquerda. É, deve ser sempre conservador no respeito da dignidade humana, sempre progressista no esforço de o incarnar no modo do tempo. Mas deixa-me terminar esta primeira carta do meu passeio que te conto, com os tais retratos de padres. Em Zola, o padre de Villeneuve, nascido em família da velha nobreza provinciana e arruinada, vive em Paris, num subúrbio proletário, em solidão e pobreza. Dá aos mais necessitados aquilo que tem, chega a ceder, a um casal zaragateiro, o seu relógio, para que o ponham no prego. Será então acusado de assédio sexual ou de hipócrita e interesseira intromissão "missionária" na vida dos pobres do bairro. A hierarquia não o apoia, censura-o. Ele apela à conversão do povo miúdo e este ridiculariza-o. O breve conto termina assim: Sente então que o povo das cidades escapa completamente à Igreja. Está periclitante no seu sonho de despertar a fé da multidão e de tornar essa fé na base da sociedade moderna. Meu Deus, terão chegado tempos novos? ter-se-á de procurar o que é  verdadeiro noutro lado, já não no dogma católico tal como até hoje pretenderam pô-lo? Crescem as suas dúvidas,, torna-se mais furioso o seu combate interior. Está no cimo da ribanceira por onde rebolam padres apaixonados e inteligentes, nos quais desperta o livre pensamento e que são arrancados à Igreja, sem que se façam soldados úteis do progresso. Ficam a sangrar, amachucados, devoram-se a si mesmos. Noutro conto, outro padre, o cura de Villeverte, já muito velhinho, insiste e consegue, à força de teimosia, ser recebido pelo seu bispo que, concentrado nas possibilidades de vôos mais altos da sua carreira eclesiástica (e política), mal o atende. E, todavia, aquele ancião caminhou até lá seis léguas, a pé, para que lhe fossem concedidas as ajudas indispensáveis à reparação da sua igreja aldeã, roída pelos anos e as tempestades. Diz ao bispo : Monsenhor, não o peço para mim, mas para Deus... E recebe esta resposta: Já lhe disse que não posso fazer nada! Deixe-me sossegado, não vê que estou atarefado? Só me resta, nesta primeira carta, e já que te trouxe retratos de padres, traduzir-te o último passo do Diário de um cura de aldeia do Bernanos:  Odiarmo-nos é mais fácil do que pensamos. A graça é esquecermo-nos. Mas se todo o orgulho em nós tivesse morrido, a graça das graças seria amarmo-nos humildemente a nós mesmos, como qualquer dos membros sofredores de Jesus Cristo. Imenso é o mistério da condição humana. Dou-te a mão

                                      Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira