COM ÉMILE ZOLA E GEORGES BERNANOS
2. N O V A C A R T A S E G U N D A
Minha Princesa de mim:
Quando, sozinho na sua cela, e tendo tempo para amar, ele se ajoelhava na tijoleira, todo o jardim de Maria crescia à sua volta, com altas florações de castidade. O Rosário deixava escorrer entre os seus dedos uma guirlanda de Ave entrecortada de Pater, como guirlanda de brancas rosas misturadas com lírios da Anunciação, flores sangrentas do Calvário, estrelas da Coroação. Avançava a passos lentos, ao longo das sendas perfumadas, parando a cada dezena de Ave, repousando no mistério a que ela correspondia; quedava-se perdido de alegria, de dor, de glória, à medida dos mistérios agrupados em três séries: os gozosos, os dolorosos, os gloriosos. Lenda incomparável, história de Maria, inteira vida humana, com sorrisos, lágrimas e triunfo, que ele revivia de uma ponta à outra, num instante. Primeiro, entrava na alegria, nos cinco mistérios sorridentes, banhados nas serenidades da alba: eram a saudação do anjo, um raio de fecundidade deslizando do céu, trazendo o desfalecimento adorável da união sem mácula; a visita a Isabel, por clara manhã de esperança, na hora em que o fruto das suas entranhas pela primeira vez dava a Maria esse estremecimento que faz empalidecer as mães; o parto num estábulo de Belém, com o longo cortejo de pastores vindo saudar a divina maternidade; o recém nascido levado ao Templo, pelos braços da parturiente, que sorri, lassa ainda, já feliz por oferecer o seu menino à justiça de Deus, aos abraços de Simeão, aos desejos do mundo; finalmente, Jesus crescido, revelando-se perante os doutores, no meio dos quais sua mãe o encontra, satisfeita com ela e consolada. Depois, após essa manhã de tão terna luz, parecia a Sérgio que o céu bruscamente se cobria. Já só andava sobre espinhos, feria os dedos nas contas do Rosário, curvava-se ao pavor dos cinco mistérios de dor: Maria agonizando em seu filho no jardim das Oliveiras, recebendo com ele as chicotadas da flagelação, sentindo na própria fronte o rasgão da coroa de espinhos, carregando o horrível peso da cruz, morrendo a seus pés no Calvário. Essas necessidades do sofrimento, esse atroz martírio duma Rainha adorada, por quem ele teria dado o seu sangue como Jesus, causavam-lhe uma revolta de horror, que dez anos das mesmas orações e dos mesmos exercícios não tinham podido acalmar. Mas as contas continuavam a correr, uma clareira súbita se abria nas trevas da crucifixão, a glória resplandecente dos cinco últimos mistérios rebentava com uma alegria de astro livre. Maria, transfigurada, cantava o aleluia da ressurreição, da vitória sobre a morte, da eternidade da vida; assistia, de mãos estendidas, derrubada de admiração, ao triunfo de seu filho, que se levantava ao céu, por entre nuvens de ouro franjadas de púrpura; ela reunia à sua volta os Apóstolos, saboreando, como no dia da conceição, o braseiro do espírito de amor, descido em chamas ardentes; era por sua vez raptada por um voo de anjos, como arca imaculada arrebatada sobre asas brancas, suavemente deposta no meio do esplendor dos tronos celestes; e aí, numa claridade tão brilhante que apagava o sol, Deus coroava-a com as estrelas do firmamento. A paixão tem uma só palavra. Dizendo, umas atrás das outras, as cento e cinquenta Ave, Sérgio não as repetira uma só vez. Esse murmúrio monótono, essa palavra incessantemente igual que revinha, semelhante ao "Amo-te" dos amantes, ganhava, de cada vez, um significado mais profundo; demorava-se nela, falava infindavelmente com a ajuda de uma única frase latina, conhecia inteiramente Maria, até que, escapando-se-lhe das mãos a última conta do Rosário, se sentiu desfalecer ao pensamento da separação.
Começo, Princesa, esta carta por uma longa tradução de uma das mais sentidas interpretações do Rosário de Nossa Senhora, que jamais li. Só te digo que, ao reler este texto, fui pôr a tocar Die Rosenkrantz Sonaten de Heinrich von Biber, ao violino de John Holloway, acompanhado por Davitt Moroney e o trio Tragicomédia. Estas sonatas são igualmente uma meditação sobre a história cristã da salvação do mundo por Jesus Cristo, Deus incarnado em Maria. A saudação do anjo Gabriel à Virgem (Ave Maria, gratia plena, Dominus tecum) é o anúncio desse resgate, repetido ao longo da recitação do Rosário e compreendido ao longo da vida da mesma Maria, em Cristo, com Cristo, por Cristo. Mas se te falo agora nisto, é porque o texto que acima traduzi não foi escrito por qualquer Padre ou Doutor da Igreja, nem tampouco por algum cristão devoto, mas por Émile Zola, escritor agnóstico, com obra condenada no Index Librorum Prohibitorum da Santa Sé... Ainda por cima, respiguei-o do romance La Faute de l´Abbé Mouret, em Portugal sobretudo recordado por paralelismo com O Crime do Padre Amaro do nosso Eça de Queiroz. Sérgio, no trecho que aqui destaquei, é precisamente o padre Mouret. Mas em próxima carta conversaremos sobre os dois romances, em que crimes semelhantes ou pecados iguais se verificam, ainda que em distintas circunstâncias, e não sendo exactamente coincidentes as linhas das perspectivas por que são analisados. Hoje, deixa-me só realçar o cuidado com que um romancista laico descreve uma experiência íntima de recitação do Rosário por um padre católico, e até a acuidade com que entende a essência de uma oração repetitiva. Fossem quais fossem as finalidades de Zola -- e a elas iremos em carta onde te falarei dele e de Eça -- , não podemos negar-lhe o mérito de querer saber mais sobre aquilo que descrevia... Nesta carta, Princesa, viajo até ao Saint Dominique, de Bernanos, não só pela simples razão da tradição católica atribuir a este santo do século XIII, mendicante e pregador, a vulgarização da recitação do Angelus (ou da avé Maria) sobre a meditação dos mistérios da salvação cristã. Aliás, os frades dominicanos ou pregadores, por estudiosos e universitários que fossem, sempre usaram, no hábito que os vestia e identificava, um rosário de contas pendurado no cinto... Mas também me ocorreu -- nem sei bem porquê -- que Bernanos talvez tivesse gostado dessa meditação de Zola sobre o Rosário, apesar de não ser grande admirador do "veneziano". Quando escreve o Saint Dominique, ele ainda não rompeu com Charles Maurras, e está mesmo confuso com a condenação da Action Française, pelo arcebispo de Bordéus e, logo depois, pelo próprio Vaticano, porque pensa que talvez os seus apoiantes católicos tenham culpas na descristianização dos valores do movimento. Naquela breve biografia do fundador da Ordem dos Pregadores, Bernanos não faz trabalho histórico, antes procura penetrar o espírito de um missionário que quis entender o mundo do seu tempo e defendeu a pobreza e o despojamento, mas sempre insistiu na função primordial do estudo e do debate, não só no combate às heresias -- que não se devia fazer pela espada -- mas na construção intelectual da renascença europeia que se anunciava no século XIII. É essa capacidade evangélica de entendimento e abertura ao mundo que impressionou o maurrasiano em debate íntimo sobre a sua própria fidelidade à causa política a que aderira e à que devia à Igreja a que pertencia. Finalmente, será a profunda fé nos valores cristãos do evangelho que o levará a romper com a Action Française, em 1932, tal como o fortalecerá na sua corajosa e frontal crítica do incondicional apoio da hierarquia espanhola à causa franquista, anos logo depois.
Isto que te escrevo é, singelamente, uma carta de confidências, nada tem de elaborado ou sistemático. E pensossinto que, quanto mais amigo se for, mais e melhor se lê nas entrelinhas do que fala ou escreve. Sobre essa capacidade evangélica de superação de nós próprios, da nossa circunstância e dos nossos pertences, diz-me muito este passo do Saint Dominique, que aqui traduzo: Eis que tudo é fresco, tudo é puro, tudo é novo, tudo se esforça para o alto, como a universal ascensão da alba. É a ordem dos Pregadores , essa grande avidez da ciência e ainda esse grande desejo de instaurá-la em Cristo. É a ordem dos Pregadores, essa impaciência sagrada que, na pequena cela, aos pés do Crucifixo, leva Domingos a rugir como um leão: a gemitu cordis sui rugitus solebat emittere. É a ordem dos Pregadores, esse grito do apóstolo que, em tempos de fome, vende o que de mais querido tem: os seus livros: «Como podeis estudar por peles mortas quando os vossos irmãos morrem de fome?» É, finalmente, a ordem dos Pregadores, a sublime inquietação do subprior obscuro que, em plena floração da vida monástica, em vão procura uma regra à sua medida e não a encontra. Tão semelhante aos outros homens -- e, aos olhos de Deus e dos seus anjos, novo, propositadamente criado, único! Por muito meticuloso que tivesse sido na apreensão e análise de doutrinas, ritos, liturgias e comportamentos católicos, Zola nunca iria dar o passo que o levaria a viver, na alma, a exigência de uma fé cristã partilhada. Ao que lhe parecia hipocrisia -- pela contradição que o próprio funcionamento clerical opunha ao espírito evangélico -- foi ele opondo a frieza insensível de um racionalismo naturalista. Mas porque procederia assim? Por maldade? Ou só por obediência à lógica determinista dos conceitos e métodos que perfilhava? Maldade não seria, há muitos exemplos da sua propensão à justiça, à defesa dos desamparados... Quanto ao seu cientismo ou positivismo, valha o que valesse, é natural que a ele se apegasse, no seio de uma sociedade que se organizava na protecção dos possidentes e poderosos, e onde a hierarquia católica ou a "Igreja" clerical os apoiava ou junto deles se refugiava. Haveria, sim, uma resposta às legítimas interpelações de Zola: e se quiseres, Princesa, ler Bernanos -- que, repito, não era seu coevo nem admirador - de fio a pavio, talvez entendas o que quero aqui dizer: em S. Domingos de Gusmão, no cura de aldeia, como na heroína de La Joie, a graça que cada um recebe nada tem a ver com qualquer imposição aos outros, qualquer exercício de poderes deste mundo, mas é, tão simplesmente, a humildade com que nos interrogamos sobre o amor de Deus por todos.
Dou-te a mão
Camilo Maria
Camilo Martins de Oliveira