COM ÉMILE ZOLA E GEORGES BERNANOS
- N O V A C A R T A Q U I N T A
Minha Princesa de mim:
Sabes bem que, muitas e muitas vezes, me tenho interrogado - e vou escrevendo - sobre o preconceito e a intolerância, a antipatia e a divisão, a exclusão e a perseguição. Temendo não ver a trave que me tapa a vista, enquanto aponto o argueiro que irrita o olho de outrem, pensei amiúde, como cristão e católico, porque diabo haveríamos de pensar que, por ser a verdadeira religião, a nossa seria superior às outras... A alegria da fé na boa nova anunciada por Jesus devia levar-nos, humildemente, à gratidão pela revelação recebida e ao gosto natural de querer partilhá-la com todos. A alegria -- e sobretudo essa alegria do evangelho, que traz sentido e liberdade à nossa vida -- é comunicativa, despertadora, sente-se como dádiva recebida e partilhada, não se impõe por qualquer manifestação de superioridade, demonstração de força ou de hierarquia de louvor a Deus. A maravilha da mensagem actual do papa Francisco é a alegria simples da fé no amor igual de Deus por todos nós. Para Deus não há cristão, budista, muçulmano, agnóstico, ateu, nem tudo o mais diferente, há, cristalinamente, o que pratica a misericórdia e ama o seu irmão. No seu discurso à Assembleia Geral da ONU, o papa falou do respeito devido à dignidade humana, à liberdade, igualdade e fraternidade de todos e cada um. Mas tal não foi uma declaração retórica, pois Francisco lembrou os direitos económicos e sociais que sustentam essa dignidade, e falou em Deus, pátria, trabalho e família. Vê tu bem, Princesa, como os gritos de guerra, de um e de outro lado, não são necessariamente afrontamentos exclusivistas. No concerto social, acima da teimosia em impor princípios próprios, nas formulações ideológicas que lhes der o tempo e o modo, só ganhamos todos com a procura do sentido da dignidade e da justiça que, em paz, nos deve construir. Drumont, que Bernanos admirava, era coevo de Zola, opuseram-se sobre a question juive e o caso Dreyfus. Não vou fazer-te aqui uma análise de casos, nem sequer disso a que, em França e na Europa, há séculos dá pelo nome de antissemitismo. Antes procurarei olhar contigo - e tentar ver - para o pensarsentir com que, por exemplo, Drumont/Bernanos, de um lado, e Zola, do outro, encararam certas realidades e acontecimentos. Talvez nos surpreenda uma subjacência comum de liberdade e coragem de pensamento e elevado sentido de justiça. Reagindo ao livro de Drumont, La France Juive, Zola publica, em Le Figaro, de 16 de Maio de 1896, um texto intitulado Pour les juifs, de que cito uns passos: Já não é um padre que o jornal almoça pela manhã, mas um judeu, o mais gordinho, o mais florido que se possa arranjar. Almoço tão medíocre como o outro, e pelo menos tão tolo. Com razão, compara a estupidez gratuita do antissemitismo à do anticlericalismo. Adiante: Eis aqui o meu contínuo espanto, que tal regresso de fanatismo, que tal tentativa de guerra religiosa, tenha podido produzir-se na nossa época, na nossa grande Paris, no meio do nosso bom povo. E isto nos nossos tempos de democracia, de tolerância universal, quando, por todo o lado, se declara um movimento para a igualdade, a fraternidade e a justiça! Estamos a tentar destruir fronteiras, sonhar com a comunidade dos povos, reunir congressos de religiões, para que os padres de todos os cultos se abracem, sentirmo-nos todos irmãos pela dor, querer salvar-nos a todos da miséria de viver, elevando um único altar à piedade humana! E aparece um punhado de loucos, de imbecis ou de habilidosos, que todas as manhãs nos gritam: "Matemos os judeus, comamos os judeus, massacremos, exterminemos, voltemos às fogueiras!" Eis o que se chama saber escolher a hora certa! E nada seria mais estúpido, se nada fosse mais abominável! Em La Grande Peur des biens pensants, Bernanos, não só presta homenagem a Drumont, como reconhece a dívida moral e intelectual que para com ele tem. O autor de La France juive é, para ele, um exemplo de independência de espírito e de coragem, num país saído da revolução, e onde, desde o Directório à monarquia de Julho, as grandes dinastias da nova burguesia se mantêm no poder, e aí ficarão durante o Segundo Império e a República que lhe segue. É contra a ditadura do Dinheiro, o esmagamento do velho povo francês, incluindo esse que, anarcossindicalista, a comuna de Paris também integra, que Drumont -- aquele que não aceita e, em período de mal entendidos, equívocos, oportunismos à direita e à esquerda, defende, mantém, proclama o ponto de vista do homem livre -- se ergue. Escreve Bernanos: Quando tiver acabado a leitura desse livro, parece-me que qualquer homem de boa fé convirá em que o velho escritor de La France juive foi menos obcecado pelos Judeus do que pelo poder do Dinheiro, de que o Judeu era, a seus olhos, símbolo ou, por assim dizer, a incarnação... E, noutro passo: "Sem dúvida", escreve Edouard Drumont em Le Testament d´un antisémite, "à primeira achega somos tentados a divertirmo-nos com o belo impudor com que essa gente escarnece os seus eleitores, trai os seus juramentos, mente às suas promessas, explora e mistifica de vez em vez cada partido, para arranjarem mais prazer e luxo"... ...Tal é essa revolta da consciência, da generosidade, da honra, de que nasceria toda a obra de Drumont. Antes de fazer, dia a dia, no seu La Libre Parole, o processo do Judeu, ele fez o processo da sociedade sem entranhas sobre a qual o Judeu fermenta. Era necessária essa grande voz, essa voz de bronze, para romper o pacto vergonhoso do silêncio. Ele fez o processo do seu tempo com tal medida no desprezo, tão alta piedade, tanta abundância de provas, que ninguém tentará uma reabilitação. Tenta-a ele, a seus riscos e perigos, sozinho, livre. No fundo, Georges Bernanos, patriota e conservador da identidade e valores tradicionais, também pensava na reconciliação do povo e do Estado, unidos contra a opressão do dinheiro. Como em monarquias históricas... Joseph Jurt, apresentando La Grande Peur des biens pensants na Bibliothèque de la Pléiade, observa que, mesmo sem acentuar tanto o problema judeu, Bernanos retoma a tese do autor de La France juive, mas sublinha que "o antissemitismo expresso em La Grande Peur nada tinha a ver com o antissemitismo hitleriano", e cita Bernanos: Nenhum dos que me deram a honra de ler-me pode julgar-me ligado à horrenda propaganda antissemita que hoje se desencadeia na imprensa dita nacional às ordens do estrangeiro... ... Se agradar ao Sr. Hitler desonrar neste momento a causa que o meu velho mestre serviu, isso que importa? Não degrada o nacionalismo a ideia de Pátria, e o militarismo militar a tradição militar? O general Franco e suas Excelências a ideia da Cruzada? Quem tenha lido Les Grands Cimetières sabe que caso faço de políticos e assassinos. Parece-me, Princesa, que o modo flâneur da minha peregrinação, uma vez mais, atirará o caso Dreyfus para outra carta. Mas, lembrado do indignado protesto de Drumont contra a desumanidade da repressão da Comuna de Paris pelo exército, ou do de Bernanos contra os linchamentos de esquerdistas espanhóis pelas falanges, deixo-te um texto bonito de Émile Zola que, quiçá, os outros dois escritores franceses não desdenhariam subscrever, e o próprio papa Francisco, com a sua caridade, entenderia: Começaram com a própria existência das sociedades. Diante dos males inevitáveis, que qualquer ordem social engendra, houve sempre homens simples, enamorados do sonho de uma felicidade sem mistura, que, sinceramente convencidos da possibilidade de um paraíso terrestre, acreditaram que bastaria regressar à natureza e, assim, destruir o estado de coisas convencionalmente estabelecido. E quanto mais belo era o seu sonho, mais intenso era o seu desejo de felicidade humana, mais ardentemente proclamavam a necessidade de demolir. A teoria anarquista continuou sempre, ora silenciosa, quase idílica, refugiada na alma dos sonhadores; ora barulhenta, exaltada, ameaçadora, no cérebro dos homens de acção. É sobretudo no fim das civilizações, no momento em que um mundo em declínio vai dar lugar a um mundo novo, que ela bruscamente rebenta. Porque, nesse momento, os erros sociais desvendam-se aos olhos dos mais indiferentes, as convenções parecem artificiais, a desigualdade mais não é do que injustiça. Então, esses seres de que falamos, feridos na sua alma verdadeiramente boa, de todos os males que em sonho tantas vezes curaram, apenas têm um desejo: matar o efeito matando a causa, isto é, suprimir o mal suprimindo a sociedade que o engendra. Publicadas em Le Figaro de 25 de Abril de 1892, estas palavras levam-me a pensar que só procurando em harmonia a justiça social nos é possível gerir a utopia. E consola-me sentir o papa Francisco ter insubmissa fé em Deus...e nos homens!
Dou-te a mão, Princesa
Camilo Maria
Camilo Martins de Oliveira