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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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COM O CADÁVER DA ESPERANÇA ÀS COSTAS

 

Ainda sobre os dias 1 e 2 de Novembro:

Dois dias para a morte e o sentido

 

Por mais arrogante que se seja e se padeça do complexo da omnipotência, ninguém, a não ser que pense suicidar-se antes, pode dizer: Até amanhã, se eu quiser. Dada a constituição corpórea do ser humano e a sua consciência antecipadora, toda a pessoa adulta e consciente, que reflecte, sabe, embora com um saber paradoxal, pois ninguém se pode conceber a si mesmo morto, que é mortal e que a morte é o limite inultrapassável. Ninguém rouba a morte a ninguém, cada um morrerá na sua vez. E as sabedorias ancestrais e as religiões e as filosofias lembraram sempre a cada um: “lembra-te de que és mortal”; aos generais romanos vitoriosos, na corrida para a celebração do triunfo, havia um escravo que lhes ia sussurrando ao ouvido o dito, em latim: “memento mori” (lembra-te de que és mortal); “sic transit gloria mundi” (assim passa a glória mundana): lembrava ao papa na sua coroação o mestre de cerimónias enquanto queimava uma mecha de estopa; os gregos definiam os humanos frente aos deuses, imortais, como “os mortais”.

 

A consciência da morte caracteriza o ser humano e, confrontando-o com a ameaça do nada — aquele “nunca-mais-para-sempre” neste mundo, escreveu Vladimir Jankélévitch —, revela-o a si mesmo na sua fundura ético-metafísica.  Aí, sabe que é um eu, único, enfrentando perguntas de abismo sem fundo, inevitáveis: O que sou e quem sou? O que quero e devo fazer?

 

Na consciência antecipadora da morte, cada um é dado a si mesmo como totalidade, ainda que incompleta, pois ninguém sabe o que é morrer nem o que quer dizer exactamente estar morto. De qualquer modo, nessa antecipação, a pergunta decisiva é: Qual o sentido da vida, da existência, da História, de tudo? Vamos realizando sentidos, mas, perante a morte, impõe-se a pergunta essencial, final: Qual o sentido de todos os sentidos, o Sentido último? Para quê? Porque, se tudo se afunda na morte: bem, mal, dignidade, indignidade, justiça, injustiça..., então tudo é equivalente, vale tudo o mesmo e foi tudo para nada.

 

 Mas é tão natural o homem saber da sua morte como esperar para lá dela. A pessoa é constitutivamente esperante, assim: por mais que concretize e realize da sua esperança, ela nunca está plena e adequadamente concretizada nem realizada, pois há sempre um abismo entre o desejado e o alcançado, e, por isso, sempre um mais além, de tal modo que  nenhum homem, nenhuma mulher morre satisfeito, satisfeita (de satis-factus, satis-facta: feito, feita suficientemente). Todos morrem em aberto, o que leva à conclusão de que a realização plena só pode vir de Outro, de Deus; só a religião pode garantir a esperança total. Assim, a própria Escola de Frankfurt vivia atenazada. Por exemplo, Max Horkheimer, um dos seus fundadores, por um lado,  não acreditava, mas, por outro, ansiava pelo totalmente Outro: “Sem Deus, é inútil pretender salvar um sentido incondicional. (...) A morte de Deus é também a morte da verdade eterna”. “O anelo pelo totalmente Outro é um anelo que une os homens, de tal modo que os factos atrozes, as injustiças da história passada não sejam o destino último, definitivo, das vítimas”. Por isso, pensava que a moral assenta em última instância na teologia, significando teologia “a consciência de que este mundo é um fenómeno, que não é a verdade absoluta, que não é a ultimidade. Teologia é – exprimo-me conscientemente com grande cautela – a esperança de que a injustiça que atravessa o mundo não seja a ultimidade, que não tenha a última palavra (...) expressão de um anelo de que o verdugo não triunfe sobre a vítima inocente”. Theodor Adorno, outro fundador, escreveu que “o pensamento que se não decapita desemboca na transcendência; a sua meta seria a ideia de uma constituição do mundo na qual não só ficasse erradicado o sofrimento existente, mas também revogado o irrevogavelmente passado”. Também Jürgen Habermas se refere a toda esta problemática, concretamente a das vítimas inocentes e da dívida da História para com elas, trazendo à colação este texto de J. Glebe-Möller: “Se desejarmos manter a solidariedade com todos os outros, incluindo os mortos, então temos que reclamar uma realidade que esteja para lá do aqui e do agora e que possa vincular-nos a nós também para lá da nossa morte com aqueles que, apesar da sua inocência, foram destruídos antes de nós. E a esta realidade a tradição cristã chama-a Deus”.

 

Claro que ninguém se pode gloriar, diz I. Kant, de saber que Deus existe e que haverá uma vida futura: se alguém o souber, escreveu, “esse é o homem que há muito procuro, porque todo o saber é comunicável e eu poderia participar nele”. Mas é razoável acreditar em Deus e esperar para lá da morte. Na sua obra Was ich glaube (O Que Eu Creio), resultado de uma série de lições, aos 80 anos, na Universidade de Tubinga, a cada uma das quais  assistiram mil pessoas, pergunta, com razão, o célebre teólogo Hans Küng: ”O ateísmo explica melhor o mundo? A sua grandeza e a sua miséria? Como se também a razão descrente não encontrasse o seu limite no sofrimento inocente, incompreensível, sem sentido!”

 

A curto, a médio, a longo prazo todos iremos estando mortos. A nossa vida e a realidade do mundo estão em processo e a História lê-se do fim para o princípio. Só no fim se poderá saber, mas, sem Deus, nunca poderíamos sequer saber quem somos nem o que pretendia a realidade e a História, porque não estaríamos lá e tudo teria sido para nada.  Lá, no final, só há, portanto, uma alternativa.

 

Claude Lévi-Strauss conclui assim o seu L’homme nu: “Ao homem incumbe viver e lutar, pensar e crer, sobretudo conservar a coragem, sem que nunca o abandone a certeza adversa de que outrora não estava presente e que não estará sempre presente sobre a Terra e que, com o seu desaparecimento inelutável da superfície de um planeta também ele votado à morte, os seus trabalhos, os seus sofrimentos, as suas alegrias, as suas esperanças e as suas obras se tornarão como se não tivessem existido, não havendo já nenhuma consciência para preservar ao menos a lembrança desses movimentos efémeros, excepto, através de alguns traços rapidamente apagados de um mundo de rosto impassível, a constatação anulada de que existiram, isto é, nada.”

 

A Bíblia, no seu último livro, Apocalipse, que quer  dizer revelação, conclui assim: “Vi então um novo céu e uma nova terra. E vi descer do céu, de junto de Deus, a cidade santa, a nova Jerusalém. E ouvi uma voz potente que vinha do trono: ‘Esta é a morada de Deus entre os homens. Ele habitará com eles; eles serão o seu povo e o próprio Deus estará com eles e será o seu Deus. Ele enxugará todas as lágrimas dos seus olhos; e não haverá mais morte, nem luto, nem pranto, nem dor. Porque as primeiras coisas passaram.”

 

É preciso relembrar esta alternativa final, concretamente neste tempo de inesperança em que, ao contrário de todas as aparências de euforia, se avança, citando um poeta galego, “com o cadáver da esperança às costas”.

 

Aqui chegados, alguém poderá objectar que a esperança no Além é alienante, porque retira força ao compromisso com a luta por um mundo mais humano no aquém. Mas, se se pensar mais fundo, é o contrário. A inesperança está a infectar a vida, porque se ama pouco. O amor autêntico quer eternidade e é o combate comprometido com um mundo mais justo, mais humano e mais feliz que reforça a esperança no Além. Como disse Immanuel  Kant de forma lapidar: “A praxis tem de ser tal que se não possa pensar que não existe um Além”.

 

Anselmo Borges

Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN | 3 NOV 2018