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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CONTOS BREVES

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9. LIVROS

 

Batem à porta do meu gabinete. Respondendo ao "Entre!", duas cabeças, uma por detrás doutra, quase sobrepostas, surgem na fresta da porta entreaberta. A mais alta traz um olhar azul, incipientemente irónico, quando nele brilha o sorriso que ela também traz nos lábios, e cobre-se de  cabelo loiro, escorreito e arrumado. A menos  alta (sabemos que, numa nossa idade, todos gostamos de ser mais crescidos) franze um sobrolho que não esconde a ternura escura dos olhos, sob um cabelo de crina rija e remoinhos. Visitam-me a Inês e o Tomás, perguntam em uníssono "Podemos, Avô?".  Não lhes dou licença, abro-lhes os braços... Logo a menina pergunta ainda: "O Avô está a escrever? Posso ver o que é?" - "Nunca te disseram que é feio ser cusca? Porque é que queres saber o que escrevo?" - "Então se o Avô não é curioso, porque é que tem tantos livros? Não os lê?" Diz então o Tomás: "Pois.. E se o Avô também escreve, não é para o Avô ler, pois não? O Avô já leu estes livros todos?" - "Li quase todos, quer dizer, há muitos que li por inteiro, outros só em parte, e mais uns tantos que só consultei... Depende do gosto, do interesse, do tempo que se tem... Qualquer livro é como uma conversa, nós não conversamos da mesma maneira com toda a gente, sentimo-nos mais à vontade com umas pessoas do que com outras, sei lá, tudo isso tem que ver com mais ou menos simpatia, entendimento, confiança... E passa-se o mesmo com os livros!" - "Mas porque é  que  o Avô  tem tantos livros?" - "Olhem: não sei se é por vício ou por virtude..." - " O que é vício e o que é virtude?" - "Diz-se que vício é um hábito bom, e virtude um hábito mau" - "O que é um hábito?" - "É um comportamento que repete os mesmos actos, às vezes até sem querermos..." - "E o Avô não sabe se comprar livros é um hábito bom ou um hábito mau?" - "Bem... Sei e não sei..." - "O Avô está sempre a dizer que sabe e  não sabe... E nós é que ficamos sem saber!" - Então explico: para mim, a diferença entre vício e virtude não é, propriamente, a de que, sendo ambos hábitos, um seja necessariamente mau e outra boa. Mas penso que todos nós devemos aprender a ser senhores dos nossos actos, isto é, saber que os fazemos e ter a coragem de responder por eles. Quando se trata de hábitos, nem sempre nos damos bem conta do que estamos a fazer... Como estes netos já trabalham com computadores, posso dizer-lhes que também uma pessoa está muitas vezes programada para fazer certas coisas, desta ou daquela maneira. Claro que a maioria dessas coisas começaram a ser feitas e repetidas porque escolhemos fazê-las, pensando ou sabendo logo que eram boas ou más. Mas também nos enganamos, e só mais tarde descobrimos que, se calhar, tal ou tal hábito não é bom, ou não é tão bom como gostaríamos que ele fosse... E podemos corrigir-nos, ou evitar fazer uma coisa habitual, pelo menos dessa vez, porque não será assim tão boa... Como assim é, o vício será comportamento que não controlamos, que não sabemos gerir; e virtude é sempre a possibilidade de nos habituarmos a fazer melhor ou de nos recusarmos a fazer isto ou aquilo, aqui e agora. Quando o Avô compra livros, nem sempre pensa bem se valerá a pena ter este ou aquele, se terá mesmo tempo para o ler, ou se será bom o que dele espera: nessas alturas é vício... - " Estamos a perceber por que é que o Avô diz que sabe e não sabe..." diz o Tomás. E logo a Inês : "Mas o Avô precisou de tantos livros para saber isso?" E o velho manhoso concluiu: "Talvez não precisasse, mas ajudaram muito..." - Riram-se (ou  sorriram só?): "O Avô arranja desculpa para tudo..."

 

Camilo Martins de Oliveira