CONTOS BREVES
10. A BARBA PICA
O meu neto Sebastião nasceu sete anos depois da sua irmã Inês. Foi sempre muito desembaraçado e, com dois irmãos mais crescidos, também foi despertando asinha... Só que, quanto a falar, procurava imitar os outros dois, pelo que, com a pressa, lhe saía a articulação atropelada, como se se exprimisse numa língua que eu desconhecia. Obrigava-me, muitas vezes, a recorrer aos maternais cuidados da Inês, que concentradamente me ia traduzindo os impagáveis discursos. Mas quando estávamos só os dois, acontecia que - depois de escuta atenta e esforçada - eu lhe dissesse "Sebastião, não percebi nada do que estiveste para aí a dizer!" Ele olhava-me interrogadoramente ("O meu Avô será pouco esperto ou estará a gozar comigo?"), trepava para o meu colo (tinha três anitos) afirmava "N´fá mal!" abraçava-me o pescoço e dava-me um beijinho: "Ai! Pica!" - "A barba do Avô pica?" - "Sim!" Daí a pouco, vindo a correr, Deus sabe donde, lá se chegava outra vez a mim... "Dás-me um beijinho?", pedia eu. "Pica!", respondia, e punha-se a milhas. Para não deixar por mãos alheias os meus créditos e direitos, bem se vê que este Avô não perdia qualquer oportunidade de picar o miúdo. O mariola levava então as mãozitas à cara, sacudia a picadela, lançava-me um olhar de cumplicidade marota, e punha-se ao fresco. Até que, aos cinco anos, num dia em que regressavam, para férias na nossa casa, Sebastião - que já ia falando inteligivelmente - me veio abraçar e me beijou a barba branca. "Então, Sebastião, já não pica?" - "Pica sim, Avô, mas eu não me importo". E sorriu-me, como quem diz: "Vê lá se aprendes com esta!" Hoje, quando o vejo, aos sete anos, tornado bom tenista e surfista, falando português, francês e inglês, como quem salta a corda, muito independente e despachado, não me surpreende a inefável ternura com que sempre vem ter comigo. Muitas coisas mudam connosco e em nós. Mas algo, muito de nós, é sempre. Tantas vezes penso como o carinho entre as gerações, precisamente porque o tempo e o modo de cada uma delas é diferente na circunstância, na percepção do mundo e nas condições de vida, é um sinal claro de que o amor não deve ser visto como poço de contradições e afrontamentos, mas enquanto permanente desafio. Teria o Sebastião quatro anos e, numa salita, onde tínhamos jogos vários e uma televisão, ele entretinha-se a desligar e ligar as tomadas de aparelhos e candeeiros, encantando-se com o acender e apagar das luzes, a mando dele, claro. Deixei-o entreter-se, mas quando entendi que para aprendizagem - até do poder dos nossos gestos - já bastava, mandei-o parar. Digo mandei, porque devo ter usado de um modo autoritário, de que ele não gostou. Deu um berro, ameaçou continuar. "Mau, mau, olha que o Avô zanga-se!", disse-lhe. Reparei em que reprimiu lágrimas que me diriam mágoa, e logo se empertigou. Cruzou os bracitos, levantou o queixo, mudou o olhar de mágoa para desafio teimoso à minha autoridade zangada. Nem estremeci, não abri a boca. Deixei-me estar, e assim ficámos, olhando fixamente um para o outro. Bem hajam os olhares que não mentem e dizem tudo. Esgotada a raivinha, sorriam-nos os olhos e as bocas. "Goto muito de ti, Avô!" - "E eu sou muito teu amigo!" Talvez por ser o benjamim - ou por não querer obedecer à Mãe (que anda sempre a dizer-lhe que não se diz tu ao Avô) - o Sebastião é o único neto que me trata por tu. A mim, que não desisto de escrever Avô com A.
Camilo Martins de Oliveira