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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CONTOS BREVES

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11. UM CARACOL SAUDOSO 

 

Na festa de S. Sebastião, como já foi contado, uma multidão de caracóis aplaudiu um menino desse nome e, em coro uníssono cantou-lhe o va pensiero. Talvez - penso eu agora, pois sou avô, e os avós têm de pensar o que podem - para lhe agradecerem, na onomástica efeméride, o seu carinhoso acompanhamento de um deles, que nunca deslocou, nem sequer tocou, apenas foi olhando e vendo, quiçá percebendo no silêncio - no silêncio que é a misteriosa voz das coisas que, por serem muito, falam pouco - como a amizade é, tão simplesmente, o inexplicável sentimento de uma presença, ainda que ausente. Há uns dias, na véspera do equinócio desta primavera, ao correr, ao fim da tarde, o cortinado que nos cobria da luz poente a entrada da casa, vejo, colado ao vidro de uma das janelas da porta, entre esse e o ferro forjado que o protege, um caracol solitário. Pasmei. Olhei-o, vi um gastrópode que era um olhar fixo. Retribuí-lhe o olhar, encostei a orelha ao lado interior do vidro, nada ouvi. Decidi que deveria ser eu a falar primeiro: "O Senhor caracol que vai desejar?" - assim ouvi muitas vezes a fórmula nas esplanadas dos cafés... Silêncio. Insisti. Nada. Antes de me irritar - sou facilmente irritável - achei melhor pergunta: "Estás à procura do Sebastião, caracol querido?" - "Percorri o jardim, subi os degraus de pedra desta entrada e, pela porta acima, aqui cheguei, a passo de caracol. O Sebastião não está? Não veio ver a primavera que chega amanhã e lhe traz, de presente, um eclipse e marés enormes?" - "Va pensiero, caracolito amigo, o Sebastião ainda não chegou, vem só depois da Páscoa, mas eu digo-lhe que vieste procurá-lo..." -  "Bem hajas, Avô, cá o espero!" - "Onde, meu lindo? Aí, colado a esse vidro? Não te peço para entrares, porque também não sei tratar de ti e não te quero magoar... Já é milagre grande - e dos maiores - estarmos aqui os dois à conversa... - "Não te preocupes, Avô, vê-se bem que és homem de pouca fé... O teu neto Sebastião, quando voltar, há de saber onde estou, já esta noite me encontrará nos seus sonhos. Sabes? Nós, os caracóis, somos assim: pequeninos e vagarosos, ninguém dá por nós, mas vamos aparecendo. Como a Páscoa na Primavera, e a saudade de Deus no coração dos homens."

 

Camilo Martins de Oliveira