CONTOS BREVES
13 . LATIM DE ATUM
É este um conto para ser lido por gente caridosa, mais caridosamente ainda, por pessoas sensatas e com muita experiência de conversa com as confusões de cabeças alheias.... Para ser objectivamente franco e decente - to be candid - começo por confessar que será sempre temeridade minha assistir ao vivo a jogos de ténis. Não tanto porque me excitem ou paulatinamente me possam enervar, mas porque me obrigam a, descontroladamente, virar a cabeça de um lado para o outro, até não conseguir fixar a esquerda ou a direita e o centro ser um ponto vago como o vento. Mas o pior, bem pior, é que entretanto tudo se vai misturando na minha cabecita. Deixo mesmo de lhe chamar cabeça, vou dizendo coisas tão lúcidas como "ó pá, não consigo parar o shaker !" Shaker, como todos sabemos, é misturador em inglês, ou ainda agitador, etc... Isto das palavras terem vida é o diabo! Agitar, por exemplo, além de misturar ideias e confundir cabeças, pode fazer espuma no banho, entusiasmar multidões, fomentar ódios e revoluções... eu sei lá! Mas quando os ingleses dizem "let´s shake hands!", agitemos as mãos!, querem afinal dizer "apertemos as mãos!", sinal de acordo e amizade, como quem diz venham mais cinco ou dá cá o bacalhau nosso fiel amigo... Seja como for, ver jogos de ténis, da direita para a esquerda, da esquerda para a direita, com a bola ao centro só quando acerta na rede e terminou a jogada... Baralha-me! Mesmo quando gosto do despique, fico sem perceber para que lado caiu a ideia, ou se, afinal, ela optou mesmo (será possível?) por ser volátil... E não há dicionário que me sirva ou salve! Acabo por trocar palavras, não digo nem penso coisa com coisa, soergo-me no sofá e já não é ténis bem disputado o que estou a ver, talvez tenha mudado de canal, os sons batidos que saltitam à minha vista não são bolas de ténis, são rebentos de réplicas de políticos que debutam, perdão, debatem...
Mas não resisti hoje à tentação de ver em directo a final de Roland-Garros. E gostei, gostei muito: cada um dos oponentes foi procurando os seus argumentos e lançando-os. No fim, ganhou o menos favorito, mas foi bonito ver-se então um abraço de apreço sincero e mútuo. Afinal, quem trabalha muito e faz, como se costuma dizer, o seu trabalho de casa, por saber o que lhe custa é também capaz de reconhecer mérito ao adversário. Não se enganam um ao outro, nem têm possibilidade de enganar terceiros... Cometi, finalmente, um erro crasso: passei de uma confrontação desportiva, esforçada, para uma conversa de declarantes políticos... Tarde acordei do pesadelo, que me agitou e confundiu a pobre cabeça, coitadita, já tão gasta pelos anos. Senti fome, mas em vez de abrir a dispensa ou o frigorífico, fui à biblioteca abrir um dicionário... E, correndo muito, fui à mercearia próxima comprar, para frugal jantar, um latim de atum. A moça de serviço percebeu o que lhe pedia, e perguntou: "Além da lata de atum, também quer uma de feijão frade?" Não será muito instruída, mas deve ter sentido prático...
Camilo Martins de Oliveira