CONTOS BREVES
- O jantar de Bucha Lingrinhas
O senhor Bucha Lingrinhas -- também conhecido pela alcunha de Orçamento do Estado - tem um pisar oscilante, até já se interrogou sobre se não seria descendente directo do Visconde Cortado ao Meio, «quiçá o Ítalo Calvino tivesse deixado engordar-lhe uma metade e emagrecer-lhe outra, hoje em dia nem os escritores conseguem ser equilibrados»... Cambaleando, caminhou do carro até ao restaurante Mesa Comum, lá para as bandas de Alcabideche. Sentou-se à mesa do canto, com vista desimpedida para a televisão que reinava sobre a sala, encomendou pratinhos de petiscos para ir picando, enquanto ia vendo o programa da noite. Sentiu-se bandarilheiro, dado que, conforme manda o novo acordo ortográfico, espetava as rodelas de chouriço com o garfo sem deixar de ser, simultaneamente, espetador de televisão. Deu graças ao progresso, sentiu grande admiração pela corrente democratização de todas as formas de cultura. No sedutor ecrã surgiam agora duas fortes personalidades, sábias de números e argumentos, que discutiam vários plafonamentos, horizontais, verticais, dimensionais, etc.... O seu lado Bucha pediu mais uns petiscos, o Lingrinhas concentrou-se no debate televisivo, mas ambos ficaram a pensar -- com diferentes graus de satisfação -- que uma casa com tantos tectos por cima, por baixo, e até pelos lados, devia ser como a de Alice no país das maravilhas... Mas Bucha Lingrinhas não é arquitecto, nem engenheiro, nem cumpriu - com a celeridade meteórica que caracteriza as aprovações hodiernas por créditos vários - qualquer curso superior, nem sequer desses tão reclamados. Assim, ficou na mesma, ainda que com desgosto de não ser igualmente sabedor de tantas coisas. Esqueceu a TV e abriu um jornal que, por brioso acaso, também tem edição ònelaine. Logo deu com abundante prosa de jornalistas e professores universitários de linguística sobre a evolução semântica das palavras, em artigo dito de semiótica, que lançava, à cara de ignorantes como ele, exemplos gritantes de variações vocabulares. Esbugalhou os olhos, com estes devorando, não os torresmos que espetava com o garfo, mas o espetáculo das letras à frente. Os insignes mestres explicavam à plebe ignara que, "contrariamente ao que o vulgo pensa, só recentemente pensar quer dizer pensar: dantes, pensar queria dizer alimentar animais, tratar de doentes ou feridas"... Se qualquer honesta pessoa dissesse eu penso, não concluiria eu existo, mas sim alimento um animal... Não esqueçamos! «Nenhum daqueles brilhantes cérebros - que por aí se passeiam em busca de novidades, por mares nunca dantes navegados, dessas que os autorizem a reivindicar celebridade e vendam jornais, revistas e programas de TV - ouviu sequer o meu professor de português -- pensou Bucha Lingrinhas - o Dr. Silva, com ordenado de docente liceal, há sessenta anos, ensinar que "o verbo pensar vem do latim penso, -as, -are, -avi, atum, que significava pesar, aferir, ponderar. A palavra, o verbo, nesse claro sentido, está na língua portuguesa desde o século XIII. Os romanos, como os de cultura latina, talvez por terem mais tempo para pensar, diziam cogito, significando então uma reflexão mais demorada, introspectiva ou engenhosa. Donde o cogito ergo sum do Descartes. O tal penso, no sentido de ração para animais, ou de curativo, encontra-se na nossa língua desde o século XV". Já o nosso Dr. Silva», lembrou-se Bucha Lingrinhas, «nos ensinava isso, e até nos disse que poderia ter sido porque "dar de comer ou tentar curar" é sempre pensar nos outros... Ainda me recordo dessas lições!». A caminho de casa, o nosso BL passou pela placa que anunciava Alcoitão. Encheu as entranhas de brios, viu-se na televisão e nos jornais, ensinando: «Chama-se hoje assim este lugar, porque os novos califas da nossa cultura, aqui têm passado noites de luxúria cerebral!»
Camilo Martins de Oliveira