"CREDO"
6. ET VERITAS LIBERABIT VOS
Em meados dos anos 80 do século passado, a minha filha mais velha estudava na Columbia University, uma das universidades incluídas na prestigiosa Ivy League norte-americana. Apesar de morarmos em Scarsdale, ali à beirinha de Manhatan, entendemos que seria preferível a Teresa residir no campus universitário, participando otimamente nas atividades circum-escolares, e vindo a casa de sábado ao almoço até 2ª de manhã... Partilhava o apartamento que lhe fora atribuído na Columbia (dois quartos, uma sala, cozinha e casa de banho) com três colegas americanas: uma católica e duas judias ortodoxas, todas excelentes alunas, dando-se bem e distribuindo entre elas as tarefas domésticas. Aos sábados, as católicas preparavam o pequeno almoço e arrumavam tudo, antes de todas saírem para as respectivas famílias. E uma delas tocava ainda no botão de chamada do elevador, pois mesmo essa tarefa estava interdita às outras duas em dia de sábado. Por isso não me surpreendi quando, anos mais tarde, li numa revista internacional que, em Israel, o desenvolvimento da aplicação de sensores electrónicos facultara a instalação de "Sabath lifts " ou elevadores de sábado, que dispensam carregar em botões... Estas lembranças despertam-me para uma reflexão sobre as tradições religiosas, a autenticidade e a hipocrisia, o conservadorismo e o progressismo, a tolerância e a aculturação. Procurarei partilhar essa reflexão - que necessariamente se processará em vários registos - com quem tiver paciência para me ler. O título cobertor que lhe dou (A Verdade vos libertará) não tem qualquer intuito apologético ou prosélito da minha ou outra fé religiosa : significa simplesmente que todos e cada um de nós - desde o ateu mais decidido a qualquer crente mais ortodoxo - quando se interroga sobre quem sou? donde venho? para onde vou? finalmente procura a Verdade que o libertará. A sua verdade, independentemente de ele acreditar, ou não, que a sua verdade é ontológica. Acrescento que não pensarei aqui nas religiões como sistemas teóricos ou doutrinais, mas antes enquanto comunidades de crentes que, agora e ao longo da sua história, têm de co-habitar a terra dos homens. Delas podemos dizer, parafraseando Ortega, que cada fé é ela e a sua circunstância temporal e cultural. E já que não vamos olhar para elas como ideias abstractas, mas como existências nas e pelas comunidades que as suportam - ou seja, como profissões e confissões, organizações e comportamentos - teremos de atender, não só às respectivas evoluções , mas ao modo como estas são percebidas, por vezes diferente ou mesmo contraditoriamente, pelos seu próprios seguidores... E, ainda, à percepção de cada uma pelo outro, isto é, pelos que estão de fora. O que nos levará a propor, para este tempo de medos e aversões, em que se badalam fobias e choques de culturas e civilizações, o culto comum da interculturalidade, em que o diálogo religioso transcenda a mera verificação da multiculturalidade, pois esta tanto poderá resignar-se com a coexistência como conduzir a confrontos agressivos, logo que o sentimento de diferença levar à afirmação autista da superioridade de uma fé sobre as dos outros. É claro e natural que eu considere a minha religião (ou o meu ateísmo) como a verdadeira, acima de todas as outras, por isso mesmo a professo. Mas também devo reconhecer esse direito a cada um dos outros. A verdade comum que nos deverá libertar a todos, é a da fé como substância das coisas que devemos esperar, a comunhão final do amor. Para um cristão, o Verbo de Deus incarnado, cheio de graça e de verdade é o amor de Deus entre os homens. Quando confesso crer na Igreja única, santa e católica, professo a minha pertença à comunidade dos crentes no corpo místico de Cristo, sabendo ainda que essa Igreja é também sacramento da humanidade inteira - passada, presente, vindoura - abraçada pelo amor universal de Deus... Todas as tradições religiosas se desenrolam sob tensões entre o fundamentalismo e o vanguardismo, o conservadorismo e o progressismo, que tanto podem gerar uma dialéctica legível por critérios hegelianos (tese-antítese-síntese, etc.), como originar cismas, seitas e heresias. Basta pensarmos, como nos recorda Odon Vallet, doutorado em ciência das religiões e professor na universidade de Paris (Panthéon e Diderot), que, de um ponto de vista histórico objectivo, não teológico e confessional, o Buda, Jesus ou Maomé surgem mais como reformadores do que como fundadores de religiões... ... O Buda era um reformador do vedismo. Achava excessivo o poder dos brâmanes, tal como Jesus teve de discutir com os sacerdotes do templo de Jerusalém... ... Este foi um judeu que quis reformar a sua religião, sem todavia a renegar... ... Maomé situa-se na filiação de Abraão, de Moisés e de Jesus, e penso que a religião muçulmana nada tem de revolucionário... ... com a sua ética moderada... seduz pela simplicidade... exigindo orações e jejum, adapta-se todavia à fraqueza humana... ... Quanto a Moisés, pouco se sabe, nem sequer a época em que viveu, se é que realmente existiu... ... A personagem de Moisés surge, antes de mais, na Bíblia, como libertador do povo hebreu, mais do que como fundador de religião, dado que o texto sagrado o situa num tempo bem posterior a Abraão... Seja como for, o judaísmo aparece sobretudo como religião de um povo e, apesar de nas suas escrituras incorporar mitos e relatos procedentes de outras regiões, como o Egipto ou a Mesopotâmia, funciona como aliança de uma nação com o seu Deus, percorrendo uma história cheia de vicissitudes, que, curiosamente, o torna simultaneamente nacionalista e portador de uma vocação universal. Só regressando às origens do povo de Israel poderemos entender o nacionalismo feroz do nosso contemporâneo movimento sionista e a sua concomitância com uma diáspora que, mesmo quando não se converte a outras confissões religiosas, se acomoda de outras nacionalidades e culturas. Em conversas correntes, quando hoje dizemos de alguém que "ele é judeu", tanto podemos estar a falar de um cidadão israelita, como de qualquer outra pessoa que professe a religião judaica - seja esta um judaísmo ortodoxo ou reformado, neo-ortodoxo ou simplesmente conservador, ou ainda o hassidismo, incluindo o movimento habad, etc... - ou que seja ateu ou agnóstico, católico ou protestante, mas de família judia... Até acontece apelidarmos de judeu alguém que nasceu e cresceu fora da esfera religiosa do judaísmo, longe de qualquer comunidade judia, só porque o nome que usa se encontra em registos seculares de cristãos-novos, como se estes, ao serem baptizados, não tivessem recebido também, além do seu onomástico, um apelido de família escolhido de entre os de cristãos-velhos... Todavia, não chamamos portugueses aos milhões de cingaleses, indianos, malaios, indonésios, africanos, americanos que, mesmo não tendo qualquer ascendência lusitana, e pertencendo a várias etnias, em virtude da conversão, simples adopção, ou ainda emancipação da condição de escravo, de quaisquer antepassados, hoje são portadores de apelidos, por vezes ilustres, de famílias portuguesas. Também pensamos repetidamente nos judeus como sendo uma raça, um grupo étnico : mas não são, pois há judeus de origens distintas, e talvez entre eles se encontrem hoje tantos ou mais de origem caucasiana do que semitas... Contudo, o conceito de anti-semitismo aplica-se ao repúdio ou perseguição de judeus, nunca de árabes que, esses sim, são também uma etnia semita. Mas também não confundimos muçulmanos com árabes, apesar de o islamismo ter nascido na Arábia ; sabemos bem que o islão abraça muitos outros povos, desde eslavos a egípcios, sírios e persas, de turcos a malaios e indonésios, de beduínos a fulas e outros da África sub-sahariana, etc... E se as mesquitas e orações muçulmanas em todo o mundo se fazem viradas para a Meca - tal como na tradição judaica as sinagogas (casas de reunião, leitura da Bíblia hebraica e oração) se orientam para Jerusalém - e apesar de o islamismo se ter erguido na circunstância de uma guerra de conquista cujo objectivo era constituir um estado político, a ideia que dele temos não é, como no caso do judaísmo, essa de uma união - que eu diria ontológica - de uma religião e um povo. Que se verifica em Israel como na diáspora... Muito embora a tentação de tornar o estado de direito democrático em teocracia se faça sentir em certos sectores mais "sionistas" da sociedade israelita, tal não parece possível, dada a cultura política de uma população que veio de experiências ditatoriais no leste europeu, isto é, negativas, ou de democracias ocidentais em regimes não confessionais. Nem tampouco se inscreve na história e tradição do povo hebreu, pois muito embora a religião judaica fosse nacional, não se confundiam as funções políticas com as sacerdotais. Nos países islâmicos, todavia, o debate, até ao afrontamento violento, entre correntes teocráticas e laicas, não parece ter um resultado unanimemente previsível. Curiosamente, o estado mais teocrático (Irão), de tradição chiíta , que remonta aos califas descendentes do Profeta, opõe-se ao propósito (utopia?) de constituição de um califado expansionista, sendo que este é promovido por sunitas marginais....cujo centro geopolítico são franjas da Síria e do Iraque. Não cabe nesta reflexão qualquer análise política do que por aí se vai passando, nem sequer tocar na violação de determinações das Nações Unidas por Israel... Estamos, por agora, noutro registo, mais virados para a vontade de entendimento do que nos diferencia, para melhor compreendermos - como ensina S. Tomás de Aquino - aquilo que nos aproxima. Não será fácil definir sempre com clareza as fronteiras de um povo, um reino, uma civilização, visto que se desenrolam no decurso da história : mudam-se os tempos, mudam-se as vontades... ...todo o mundo é composto de mudança, tomando sempre novas qualidades. As religiões existem em sociedades humanas que se vão transformando no tempo, as palavras que as dizem sofrem evoluções semânticas, os conceitos que as sustentam vão sendo circunstancialmente entendidos e proclamados. Assim essa ideia de povo de Deus - Israel, Igreja, Umma - é inicialmente diferente para judeus, cristãos e muçulmanos, mas para cada uma dessas categorias de fiéis também não significou sempre o mesmo, sendo ainda certo que, em qualquer dessas religiões, sofreu apelos nacionalistas e universalistas, primitivistas e evolucionistas.
Para entendermos o que é o goy kadosh, o Povo Eleito, talvez tenhamos de olhar pela perspectiva, profética e messiânica, do povo e do reino de Israel. Ou de refectir sobre o dilúvio universal e a arca de Noé, em que se salvam os que Yahvé escolheu da destruição que eliminará todos os outros descendentes de Adão e Eva. Mais tarde, Abraão será pai de todos os povos, mas a Terra Prometida caberá a Isaac, filho de sua mulher Sara, pai de Jacó-Israel. Ao filho da escrava Agar, Ismael, será atribuída a linhagem árabe... Assim, o reshit -- origem e princípio do Povo Eleito -- é separado do resto da humanidade e consagrado a Deus, e o que dele resta, o sheerit, pertencerá ao homem, muito embora venha a beneficiar da redenção adveniente nos tempos messiânicos, quando finalmente terminar o exílio de Israel. E este Israel, portanto, concebe-se como a parte da humanidade que Deus escolheu para se revelar e manifestar, sendo ,simultaneamente, acima dos outros, o povo sacerdotal, que está entre Deus e os homens todos. Shmuel Trigano, professor de sociologia na Universidade de Paris-Nanterre e director-fundador do Colégio de Estudos Judeus da Aliança Israelita Universal defende, no seu Le judaïsme et l´esprit du monde (Grasset, Paris, 2011), que o cristianismo e o islão se erigiram em outros Israel, como seus substitutos, seus sucessores, e edificaram monoteísmos libertos do interdito de representação que comandava o lugar vazio ao lado de Israel real. Dessas construções nasceram universos fronteiros a Israel, não contrários, mas antitéticos. Jesus é Deus, Maomé o único representante de Deus. O poder decorre deles. O seu interesse vai ao outro mundo e a verdade absoluta que representam. O messias ou o profeta são hierarquicamente colocados acima dos homens, e consigo necessariamente trazem impérios. A sua autoridade, todavia de Deus, não decorre de uma aliança - no sentido político do termo - mas de um elo metafísico, não textual nem deliberado : a fé em Jesus que morre para salvar o homem é o modo de entrar na aliança. A submissão (que se diz islão) à mensagem de Maomé governa a entrada na verdadeira umma... Eu diria que o cristianismo surge como sucessor do judaísmo, mas no sentido de seu continuador no cumprimento da promessa messiânica : a Igreja de Cristo é o novo Israel. Porque o próprio Deus tomou a condição humana, o povo eleito já não é separado, nem pode ser percebido como sectário, mas é testemunha da Boa Nova, sacramento da redenção e vida em Jesus Cristo e por Cristo oferecidas à humanidade inteira. É facto que, desde Constantino, a Igreja nem sempre resistiu à tentação mundanal do poder temporal, quer concebido como direito divino dos soberanos cristãos submetidos ao papa (que aliás a sujeitou a guerras intestinas, entre guelfos e gibelinos, p. ex., e muitas outras, durante séculos), quer na soberania directamente exercida nos estados pontifícios, quer na motivação de cruzadas e outras expedições militares e políticas... Esquecia-se de que "o meu reino não é deste mundo"... E, concomitantemente, refugiava-se - à moda de Lutero, p. ex. - na teologia dos dois mundos, dessa vez esquecendo que a Igreja é anúncio, fermento e sal da terra, que o testemunho da Jerusalém celeste, da cidade de Deus, também é devido pela pregação e acção pela justiça e a paz na cidade dos homens.
É certo que o Corão chama grande jihad ao esforço que o crente deve fazer como peregrinação interior de conversão, sendo a jihad menor (al-jihad al- asghar) a guerra defensiva, aquela que se move em nome e defesa de Alá, em legítima defesa do seu culto ou dos estados muçulmanos, em caso de violação de juramentos e acordos, de recusa do pagamento dos tributos devidos pelos infiéis que neles vivem... A guerra de agressão é condenada, sobretudo se feita com vista ao enriquecimento temporal e material. Seja como for, o muçulmano, aquele que se submete à vontade de Alá, tem o direito e o dever de combater os seus inimigos, em caso de agressão ou desrespeito. Há, portanto uma justificação religiosa para a guerra. Talvez por isso, o nome de Deus seja sempre invocado para o efeito, mesmo no confronto entre filhos e reinos do Islão. Até em curiosas situações de alianças entre muçulmanos e cristãos, contra...muçulmanos e cristãos! Pense-se, p. ex., no califa Abássida Harum al-Rachid que, de Bagdad, cidade capital ordenou a igualdade de todos os muçulmanos, pelo que a umma deixou de se limitar aos árabes, e era aliado do imperador Carlos Magno, opondo-se, por amizade a este, ao império cristão de Constantinopla, enquanto o imperador franco do ocidente se opunha aos Omíadas, rivais dos Abássidas, instalados na Península Ibérica... Todavia, a ideia de Islão, mesmo na vigência de regimes políticos muçulmanos tolerantes de outras religiões, tendeu sempre a abranger a religião e o estado.
Tal conceito cripto teocrático também não foi estranho à cristandade que, já no sec. VIII instaurava um estado no Vaticano, que ainda hoje existe, que chegou a atingir alguma expressão territorial e, durante séculos, não só manteve a afirmação da supremacia e primazia papal sobre os soberanos temporais, como participou em variadíssimos conflitos políticos. A surata primeira do Corão, como quase todas as outras, começa Em nome de Deus clemente e misericordioso, e continua assim:
1. Louvor a Deus, soberano do universo,
2. O clemente, o misericordioso,
3. Soberano no dia da retribuição
4. É a tfi que adoramos, a ti que imploramos socorro
5. Guia-nos pelo caminho recto.
6. Pelo caminho daqueles que cumulaste de bens
7. Daqueles que não incorreram na tua cólera e não se perdem. Amen
Qualquer judeu ou cristão não hesitará em proferir esta oração. Como nenhum judeu ou muçulmano discordará de S. Tomás de Aquino quando escreve na sua Summa Theologiae:
A misericórdia efectiva é o que de melhor podemos dizer de Deus.
Todos concordarão em que dar testemunho de Deus é praticar a misericórdia efectiva, que é justiça e paz. Para além de sobejos erros históricos e da permanente tentação da própria eleição de cada uma e da respectiva supremacia sobre as outras, cada religião sabe que a verdade única que nos libertará deve estar na fé de todos na misericórdia de Deus, uns com os outros partilhada.
Camilo Martins de Oliveira