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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CRÓNICA DA CULTURA

Por uma Nesga Soberana

  


A Manca era uma mulher amputada. Fora ferida em tempos. Andava numa guerrilha e um dia abriu guerra ao mundo quase todo. Depois colocou-se no melhor ponto de vigia. Nada aconteceu que se visse, mas saiu de lá manca.

A verdade, é que nunca mais ninguém lhe perguntou se, a ela, a vida lhe tinha acenado das planuras agrestes do medir-forças. Ainda assim todos os outros ficavam na penumbra do suposto acontecido. Os outros eram gente a correr, gente bifurcada, gente que jogava o jogo do eventual último jogo do entendimento. Submissos e ainda assim, xaroposos, agitavam os poderes, rindo em gargalhadas sem higiene.

A manca, alcunha de vida, escutava as distâncias, o tango do tempo, o som das culatras de muitas espingardas.

Também naquela tarde a sua memória se reviu nos rostos, nos timbres, no belo amor que abre os braços, nos insensatos labores que recompensam, nas puras noites e nos mares brancos e verdes e turquesas que não permitem a maré baixa ao peito.

Mergulhada na vida e distraída da morte, sem pensar numa escrita que a impedisse da própria perda, escreveu, volteando o ar: eu sou uma promessa antiga.

Quando rompeu a manhã, ainda escrevia: Eu sou o meu transtorno, o meu carimbo, o meu teatro, o meu romance, a noite e o dia a falar horas a fio debaixo de um manto de caramanchão; eu sou a que recebe o beijo em casa e que me desincumbe de mancar e enfim volto ao meu acampamento. Aquele, no qual faço o balanço das baixas e dos danos, aquele que me entende desativada, aquele que me olha como uma desforra e ainda assim dobra-se para me amparar do solo. Aquele que me vê partir na bolha de uma lágrima e espreita a minha surpresa surpreendida face a face ao olhar de um pássaro.

Nem forma, nem nítida face, nem visita, nem assalto, nem daqui, nem dali, afastada apenas de quando em quando de mais uma manhã que nascia, e já a Manca se preparava incauta e atenta a um eventual último passo.

Um dia, um dia colocou num boião alquímico o limite que afinal lhe não pertencia. Uma vez mais divergia e fechava na sua concha as raras e puras pérolas, essas mesmas onde se incumbam os afetos sem “se”.

Essas mesmas que por um olhar amado na clareira de um feriado fazem corar o coração.

Então, sob um céu tão baixo que lhe acenava como uma escada, refletiu que os canteiros também se regam na terra dos mal-entendidos e das rosas colhidas, e não obstante o cansaço, levantou um voo não manco e deu a mão ao cortejo das dúvidas, de novo, por uma nesga soberana.

 

 Teresa Bracinha Vieira

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