CRÓNICA DA CULTURA
AFONSO CRUZ
Sendo uma bola de pó feita de restos humanos, não deixa de ser irónico que o que varremos é a nossa própria morte.
A.C.
Li no Jornal de Letras (nº1356) «Pó» de Afonso Cruz, um dos nomes mais conceituados da nossa literatura.
Imaginei-nos numa fábrica que se vai despedindo do que produz, e antes de fechar, expõe o que resta de um processo. Depois, varre pele, que o mesmo é dizer corpo, e varre alma, que o mesmo é dizer quem lá trabalhou.
O êxito passou a ser a ideia da transição para outro produto, e essa ideia não é estática, mas cristaliza se não se desenvolver, passando a ser algo físico de explicação simples e de sentido único: pó.
A morte mais terrível seria mantermo-nos iguais
A.C.
Quem na fábrica conhecia previamente as perguntas das dissertações dos novos produtos ou das novas ideias, ou quem conhecia os arguentes, era estável, tão estável que definharia no próprio pó, engrossando-o, sem que tivesse dado algo avesso à morte.
Os outros eram os do preço a pagar pela arte da vassoura no regresso da pá.
A única maneira de matar a arte ou qualquer produção imaterial é disparando esquecimento, sendo essa também a única forma de uma alma morrer, tão diferente da outra, a do corpo que se transforma em pó.
A.C.
Percebe-se ou vai-se percebendo que no final de muito ou de tudo, não é tempo de reocupar o passado com a linha de montagem da fábrica. A fábrica e o produto já não estão ali. São apenas pó varrido na sua relação com o mundo. A morte não se altera.
Num sentido absoluto, a morte não é morrer, é esquecer a canção.
A.C.
Diria que a morte pertence ao que não negamos, mas varremos.
Talvez acreditar que em tudo há sempre um mais secreto: uma passagem que pode até nem coincidir, mas que não esquece por uma outra boca - que não sucede necessariamente à nossa - o som similar à vibração das folhas.
Que se leia Pó de Afonso Cruz, meu profundo convite.
Que me tenha aproximado do que queria dizer é também minha viagem.
Teresa Bracinha Vieira