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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CRÓNICA DA CULTURA

DE UM PONTO A OUTRO A COMPAIXÃO DE NÓS

   


Sentada numa cadeira junto a uma porta trancada, por onde empregadas e enfermeiras do Lar se cruzavam, estava Fernanda.

No rosto, a expressão de uma profunda zanga, um sofrer insubmisso por ali estar. Enganaram-na, e ela sabia-o, agora.

O seu tempo, assim, iniciara-se, e se nada fizesse, a idade que tinha, podia aprontar-lhe muitos e muitos anos daquela cadeia de múltiplos panos brancos urinados, e rosas de cheiro.

Sentia com inenarrável sofrimento que filhos e amigos tinham acordado que ali seria o seu novo espaço, ali viveria sem queixa, mas com muita compaixão de todos - até das rosas e dos panos brancos e do cheiro a urina - e por tudo, deveria ficar grata, até as raras visitas lhe fariam bem. Não ter memória alguma, um dia, seria conhecer a paz.

No quarto, nada era permitido de bens pessoais. Tudo absolutamente austero. Quase ferro.

Uma fotografia numa mesa do seu quarto, seria o bastante do mundo que vivera, e a família escolhera uma foto, na qual, todos, todos muito felizes, menos ela, sempre com os olhos arregalados de pergunta.

O passado, caminharia para não existir, pois nunca soubera uma resposta que a sossegasse, afinal.

Doía-lhe muito suportar o duche comunitário das oito horas da manhã. Todas sentadas nas cadeiras de alumínio presas ao chão, com buracos nos assentos por onde escorria a água dos duches que se abriam e fechavam todos ao mesmo tempo.

Por ali, a nudez forçada, era símbolo de aquietação igualitária. Assim o Lar da Paz.

Emoções também não eram bem-vindas. Tinha tudo e um dia, fraldas, e teto para já, e terço diário e sopas leves, e panos brancos, para além do duche comunitário.

Bastava-lhe acomodar-se e ser educada.

Fernanda olhou os vasos de flores secas ao lado da sua cadeira junto à porta de saída do Lar da Paz, e de repente, recordou-se que no meio da terra, havia algo que de noite lhe consumia as vísceras e lhe sorvia especialmente o coração.

São todas assim? Perguntou a uma das empregadas apontando para o vaso? As da entrada do jardim é que são bonitas, responderam-lhe.

Pois sim, seria verdade, a mentira, exprimia-se sorridente à entrada da porta principal que impressionava os familiares dos utentes, ou aqueles que queriam deixar-se impressionar para futura consciência tranquila.

Havia mesmo este vaso das flores da vigília ao lado da pesada porta do Lar da Paz, não fosse ela, a paz, ou ela a Fernanda, ou outros como ela, tentarem escapar ao pulmão seco a que os tinham condenado, eles, os seus amores, delegando poderes sucessivamente até ao nada poder mandar.

Até um dia.

Fernanda poisou no tal vaso das flores da vigília um rebuçado que tinha no bolso, e sorriu ao vaso, às flores, e aos olhos da máquina de filmar.

Devagar, abriu a poderosa porta que acederia à sua casa ausente e já numa outra existência, saiu.

 

Teresa Bracinha Vieira