CRÓNICA DA CULTURA
OS PÉS QUE TRANSPORTAM GENTE À HUMANIDADE
A crise humanitária que só em 2015 levou a que mais de um milhão de pessoas atravessassem o Mediterrâneo em parcas embarcações, permanece ativa por muitos meios, e com muitos milhares de seres a pagarem com a vida a tentativa de chegarem à Europa ou aos EUA.
São êxodos desesperadíssimos estes que também suportam os terríveis encargos que os traficantes de seres humanos cobram por mortes quase certas, ou por servidão torturada enquanto sobrevivida.
E são encargos que também correspondem a dinheiro, verbas dificílimas de obter nas terras de miséria absoluta que agora tentam abandonar, e quantas vezes, deixando por lá as suas amadas e para sempre condenadas famílias.
Os sobreviventes (quantos?) ajoelhados às fronteiras dos países da sua esperança, por ali ficam, em carne viva, de alma desolada, destruída, por não terem conseguido entrar lá onde a vida se faria antes que o sangue lhes secasse nas veias.
Todavia, raramente se os escuta no lamento da decisão tomada e inerente à tão temerária viagem para a Europa ou EUA.
Tudo é preferível ao que lhes era imposto nos países de origem. E o tudo, mesmo que a um preço cruel, é preferível do que ficarem onde estavam, ou tomarem a decisão de se dirigirem a outros países onde a liberdade e o respeito pelos direitos humanos não existem de todo.
Na verdade, diga-se, são hercúleas as desigualdades nos níveis de vida entre as várias regiões do mundo, implicando outras desigualdades fundamentais a nível dos direitos da educação, da alimentação, da saúde, das liberdades em geral, da esperança de vida com a mínima qualidade.
Contudo, registe-se que as persistências das guerras em todo o mundo, geram sempre disparidades tremendas, horrores inenarráveis, inverdades que tornam desconcertantes as explicações das razões das diferenças entre os países mais ricos e os mais pobres.
Na verdade, a decisão de arriscar a vida apenas por um espaço de tempo em que pelo menos a esperança seja vida, ganha algum avanço à desgraça: eis o espírito esperante.
Contudo, em países em vias de desenvolvimento, em que se tentou que o aumento do progresso tecnológico expandisse o crescimento económico, a desigualdade entre as nações persistiu de tal modo que, bem se pode considerar, uma ausência total da análise das causas intrínsecas da pobreza, sobretudo das que que criam barreiras que contribuem para um desenvolvimento profundamente desigual no nosso planeta.
De reter, nomeadamente os impactos assimétricos da globalização e da colonização nos últimos dois séculos.
De reter, nomeadamente o ritmo da própria industrialização em países desenvolvidos e em desenvolvimento que, aliás, agora também precipitou um aquecimento do planeta que ameaça a vida, questiona a ética e a sustentabilidade da jornada.
De reter, as dramáticas atrocidades de todos os totalitarismos que bloqueiam a evolução do espírito da espécie humana.
Mas, se todos sabemos que a riqueza se continua a distribuir de forma tremendamente desigual, e até por fatores históricos e geográficos, também todos sabemos que as lancinantes crises humanitárias estão repletas de pormenores terríficos não isentos da nossa responsabilidade, certo é que as mortes das gentes do esperante, nos mares-e-estradas-cemitérios, só se detém, se acaso se não ignorar as correntes poderosas e minadas que correm dissimuladas por baixo dos pés que nos transportam enquanto gente a esta humanidade.
Teresa Bracinha Vieira