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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CRÓNICA DA CULTURA

AS ÁRVORES METAFÍSICAS


Da coragem sofria-lhe as consequências, não todas. Mas.

Analisara os conluios de uma medicina assim praticada e dela se assumiu franco atirador.

Realizava com brio todas as consultas e demais trabalhos que a profissão lhe exigia e, ainda assim, os seus serviços eram dispensados com frequência.

Entendia que quase todos tinham conhecimento da injustiça que em relação a ele se praticava, mas as indeterminadas determinações superiores e o superior interesse da moral dos colegas, mandavam que a imprudência de uma existência e de uma essência diferentes, não fossem nunca realidade a ter em conta.

Havia que lhe fazer a vida difícil custasse o que custasse. E faziam. Registava.

Ele era o cordeiro.

E pelos anos fora enobrecia-se por tudo o que cumpria no equilíbrio calculado entre a diferença e a similitude que o não perturbava.

Tentara várias vezes conversar com os colegas explicando a sua mágoa do não reconhecimento do seu honesto e imenso saber na profissão, e escrevia cartas a quem poderia com ele nidificar posturas, mas uma tumba de silêncio fora sempre a resposta.

Os doentes, os doentes reconheciam-lhe uma dissemelhança exprimida numa zanga fria e distante, mas nada diziam. Aos doentes acode-lhes esmagadoramente a fragilidade sem outra saída, e eles sabem-no, e ainda que muito agradeçam qualquer dever que se cumpra na sua situação, toda a expressa gratidão faz parte da fragilidade do seu estatuto.

Contudo, nos vários hospitais por onde andara, o nosso franco atirador sentira-se sempre ferido por arbitrariedades; humilhado pelas dispensas de opinião, e sentira mesmo que o impediriam definitivamente de qualquer progressão na carreira.

Um dia, um dia, desesperado, decidiu solicitar uma reforma antecipada e, corajosamente, sofrer-lhe todos os resultados e partiu.

O contacto com o sofrimento humano elucidara-o da tragédia da condição de todos, mas a certeza de que na vida se podem contrariar os desesperos, levara-o a uma fuga para o reencontro. Certo estava de que tomara a decisão correta e que detinha o poder de a controlar.

Mas, o tempo foi-lhe trazendo um outro tempo, um tempo portador de situações complicadas como a de o clarificar no quanto a origem humana é comum e recente.

Contudo, ele bem conhecia como se geriam as culpas e que desculpassem, mas continuava a discordar dos demais. Era diferente. Parágrafo. Até porque egoísta não fora e a doçura e compreensão nas situações mais ariscas da vida, nunca lhe faltara. Poço de certezas esmagadoramente virtuosas com as quais negociava as interpretações, apercebeu-se um dia que também se esquecera totalmente do colega que lhe fizera o curso em grande parte.

                                                                                 *

Naquela noite a insónia encaixilhava-lhe árvores estranhamente contorcionadas como se se tratasse de belos destroços de guerra muito vivos.

O confinamento apresentara-lhe finalmente as árvores metafísicas.


Teresa Bracinha Vieira

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