CRÓNICA DA CULTURA
À medida que as crianças crescem, vão guardando num sótão as caixas de histórias que lhes foram contadas, e quantas vezes, a seu pedido, repetidamente contadas, sobretudo quando por elas a paixão da sua imaginação lhes acrescia.
As crianças apaixonam-se por histórias mesmo antes de as saberem ler, e recordam-nas ainda que as interpretações que lhes possam dar venham a ser tão diferentes quanto as estações dos tempos em que as escutaram.
E assim o peixinho da horta vivia muito triste porque ninguém gostava dele ainda que se mostrasse sempre muito sorridente quando saltava aos olhos dos meninos e das meninas, a luzir como ouro nas beiras-pratos.
Era um peixinho muito especial já que tinha nascido na horta e não vinha do mar como os outros peixinhos, e a sua cor esverdeada-amarelinha era-lhe dada por nascimento e pelo ovo com que se embrulhava, qual manto de príncipe, e com ele, satisfazia todos, todos os desejos de quem dele gostasse.
Ainda assim o peixinho da horta não era amado por ninguém e regressava sempre triste para junto das alfaces, dos agriões e de outros feijões com quem de facto se não parecia.
E o sono lá chegava a todos antes que a história fosse previsível.
Enquanto isso as crianças cresciam e as histórias fariam delas muito do que seriam, mudando-as até na parte de entender o mundo e nas escolhas dos amigos que faziam.
Porém, aos poucos, iam-se desvanecendo os amores pelas histórias e pelos heróis e tudo ia parecendo desnecessário.
Mas um dia, num dia de já adultos, subitamente regressamos ao local onde todos já pertencemos, com carrinhos de rodas ou arcos de arame a tropeçar nas lamas, e eis que poisa na memória e entra na corrente sanguínea, o peixinho da horta que acena agora irresistível, do mar, da horta, com ovo e verde e príncipe e não príncipe, nem escravo da tristeza nem da alegria e nós, extasiados com a oportunidade de o rever com as lentes deste algures subaquáticos e térreos que estão na mente, acreditamos finalmente que ele sempre foi verdadeiro e diferente, e que, naquele tempo, tinha sido absurdo que não tivesse sido amado já que agora nos bastaria uma gota do seu sorriso triste, ou risonho, e seríamos todos os exercícios de um mundo.
Teresa Bracinha Vieira