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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CRÓNICA DA CULTURA

  


Durante uns tempos ele teve um inquilino no quarto de hóspedes. Era mercenário. Andava sempre de colete à prova de bala.

A ambos agradava que fossem muito calados. O tento na língua era fundamental. As paredes têm ouvidos.

Um dia, o mercenário, depois de pedir licença, levantou-se e saiu da sala. Foi a primeira vez que o vi de frente. Tinha uma carantonha que fazia medo. O que faria ele ali?

Uma vez por semana o sacerdote visitava-o lá em casa e recomendava-lhe um rosário de mea culpas que ele silenciosamente aceitava cumprir, recolhendo-se no quarto.

Naquele sábado quando cheguei, o quarto já estava vazio e limpo. Chegara a hora de eu poder ser o inquilino que se seguiria. O mercenário sentira-se livre e partira. Ouvi.

Aquilo tudo me fez uma grande confusão.

Mas, talvez, quem sabe? eu também precisasse de alguém que me aliviasse do peso do que sabia de mim e me ajudasse a encontrar algo neutro.

Talvez um sacerdote pudesse ser o meu sapador psicológico que me ajudasse a desarmar a bomba das verdades.

Em rigor, vivia extenuado de tanto me debater com os meus demónios, com os meus pesadelos, as minhas insónias e aflições continuadas, e decidi procurar ajuda no especialista em dramas de almas.

Assim, combinei aceitar terços e terços de mea culpas durante uns tempos, convicto da verosimilhança com o que acontecera com o mercenário.

Sentir-me-ia livre e partiria, enfim.

Mas nada acontecia. As múltiplas penitências não me abriam portas nem frinchas. Eu era uma verdadeira fortaleza de mim. Os deuses não entravam na minha própria história melhor do que eu, e o alerta, pertencia-me.

Não era mercenário. Não possuía carantonha de fazer medo, mas algo me impedia de ir à vida.

Num final de tarde, agachei-me exasperado no soalho do quarto com a cabeça entre as mãos. Arranhei a cara como se lhe quisesse tirar a pele. Gemi como só se geme no dia da agonia.

Tempos, tempos de inquilino no quarto de hóspedes.

Tempos também em que o abismo começou a tomar forma de braços, e eu muito devagar deixei de ser o final de alguma coisa e peguei no giz, o registo que desaparece, ou uma simetria entre o que morre e o que floresce.

Pessoa fosse como fosse.


Teresa Bracinha Vieira