CRÓNICA DA CULTURA
A GRANDE AVENTURA CONTINUA A SER A INTERIOR
Não se desejam democracias supostamente aperfeiçoadas até ao adormecimento de quem não zelou pela exclusão, pela violência, pelas voltagens das diferentes culturas de humanos como nós.
As democracias existiram e existem para serem cuidadas e acordadas o suficiente para que nelas não medrem os silêncios brancos.
As democracias não se desenvolvem no isolamento do não escutar outros mundos, nem se podem envolver em mistérios que não descodificam erros graves não os denunciando, nem criando alternativas de correção, e não podem, nem poderiam as democracias deixarem-se constituir como meras periferias de natureza e cenários.
Todos os que para essas democracias contribuíram, são os mesmos que lhes reforçaram a fragilidade sob um aparato jurídico que as limitou desde a primeira hora.
A democracia por si só não é garantia de liberdade e a sua essência sempre dependeu da cultura e do desenvolvimento dos povos no aprendizado.
As democracias possuem vínculos irrompíveis e todos nós lhe sentimos a liberdade possível a entrar por aquela janela que nunca se fecha ao radar atento à descoberta que faz dos homens uma noção mais disponível.
Certo é que os homens têm de assumir a responsabilidade de se deixarem convocar pelo mais inóspito que se agarra à mochila das democracias, e descobrir a razão da não luz, e levá-la até onde se possa resolver por empenho e surpreendente passo a passo o que se permitiu que enquistasse.
E a democracia é também o reconhecimento da oposição.
E a democracia existe quando é possível o sim e o não, ou seja, quando nos podemos condenar, mas também salvar-nos.
E aquí a fundamental esperança de Aranguren - Nadie connoce al ombre, nadie puede sondarle en su corázón, pero debemos creer en él y esperar de él.
Todavia, nunca descuremos que o ambiente molda o caracter em maior dimensão do que o património biológico, como nos diz Kerstin Bergman, e não é possível eleger entre a violência e a pureza, mas sim entre distintos tipos de violência como bem afirmou Merleau-Ponty.
Na verdade, apela-se à violência e à não violência, quando ambas não se reconhecem como tal porque se autojustificaram e institucionalizaram pela lei dos homens, afastados do conhecimento de si, e nesse “si”, a violência primária e nua encapotada sob o manto do direito e da moral.
Há muito que a não-vida fez parar mentalmente as gentes que só se identificaram com elas próprias, e são essas mesmas gentes que seguem os guionistas como se segue um vício pardo, mas metastático.
O laisser faire permitiu os negócios de proteção de grupos para privilégio real de uns poucos, sem se procurar uma resposta de moralização democrática, a partir da desigualdade provocada nos cidadãos por estas mesmas realidades.
Mas registe-se que fora do espaço da democracia até o direito natural se converte num instrumento político ao serviço da ordem estabelecida.
E também certo tipo de religiosidade, quando se sente ameaçada pela secularização própria dos nossos dias, reage constituindo-se na base de muitos fanatismos.
E diga-se que as democracias permitem, enfim, que um sistema de vasos comunicantes funcione.
Todavia, para isso acontecer em consistência, não nos esqueçamos de corrigir as nossas inúmeras omissões aos avisos de entupimento desses vasos comunicantes, nomeadamente sabendo o que constitui a integração social, indispensável realidade para a estabilização de todos os excluídos, os sem oportunidades, os desprovidos da possibilidade do uso dos direitos, enfim, todos aqueles para quem a repulsa pela democracia ou por um extremismo qualquer lhes é absolutamente indiferente.
Ao contrário do que muito se afirma, não estão os bons de um lado e os maus de outro, para se condenar uns, e para que se possa canonizar outros, só a minimização moral sem sustentação na mais ínfima realidade, concede.
Não há maus sem mescla de bons nem bons sem mescla de mal algum, mas a situação extremada de ambos constitui a suprema responsabilidade de todas as maiores violências, de todas as ambiguidades, de todas as submissões ao poder de quem tem, em valor monetário, o mesmo que um orçamento de um estado soberano, e ainda promete oferecer a todos um teto para uma existência ajoelhada.
Só o homem aventureiro que renuncia a este amparo submetido, se entrega ao risco de um heroísmo solitário, esse mesmo que todo o homem generoso transporta em si, colocando-se fora desta nova lei, não enquanto bandido, mas recusando o colaboracionismo assente nos caídos que cederam ao cansaço, ou os que habitaram a ignorância não sabendo desde quando assinaram o contrato. Este o tema de Albert Camus no seu livro Os justos.
As democracias estão confrontadas por uma polarização aberrante. As redes sociais provocam indizíveis disfunções. Os algoritmos estão projetados para que as pessoas cliquem e cliquem e cliquem, pontuando nas bitcoins, ou a facilidade do poder ao dinheiro não fosse a base da nova e opulenta sociedade, a mesma que diz respeitar os sentimentos numa nova fórmula sem qualquer emoção.
Mas como a grande aventura continua a ser a interior
Sei muito bem o que não me quero tornar
Nietzsche
Teresa Bracinha Vieira