CRÓNICA DA CULTURA
Carta ao meu tio Victor
Pois é voltei a dizer que o tio é bastante alto. É o tio do fato quase branco, suspensórios e chapéu azuis- mar, olhos fundos e mãos de aristocrata e que me espera na plataforma do comboio como um príncipe quando até si chego vinda de lá do meu lugar. Também disse que o tio tira o chapéu para me abraçar e me pergunta sempre: foi boa a viagem? podemos almoçar no mesmo restaurante? E lá vamos num transporte público, um de frente para o outro, e eu a ouvir as descrições dos motivos das casas serem fatiadas, terem azulejos ou outras características que as releve na sua opinião.
Depois vem a tarde quente na sua sala de avançado envidraçado. Conversamos. A PIDE é sempre tema ou o tio não tivesse de ir buscar forças e perdê-las quando o colocaram de estátua na prisão de Caxias. A política é por si falada com sarcasmo e não entendo bem porquê e o tio sabe disso. Digo sempre.
O nosso jazigo de família também é tema; ou por ser visitado pelas viúvas da vida, ou para lembrar que o sino toca e nestes casos os caixões ouvem e por isso, num futuro, imaginando-nos lá dentro, nos faz logo ali decidir rejeitar o apartamento e ir conhecer a terra funda ou as brasas, depois se vê.
E continuamos tarde fora a falarmos de partidas e chegadas à vida que o tio me quer fazer saber. Também falamos de livros e dos pardais rasantes ao solar, sobretudo quando junto à porta da cozinha tudo nos cabia na palma da mão ou casa não fosse lar, e as criadas o bem-estar dos quartos de antigamente.
Também disse que dou muitas vezes com o tio a espreitar de lado o meu sorrir e o meu olhar, a confirmar a minha total parecença com a minha mãe e a dizer-me o quanto relê as minhas cartas e nelas eu a crescer e eu bem as vejo pousadas na mesinha ao nosso lado, empilhadas com rigor.
Sobrinha, que te quero tanto tirar um medo de entre os que irão aprontar-se no teu caminho. E afinal nem o terem-me feito de estátua me faz saber como limpo o caminho aos teus passos.
E de casaco já vestido ouço-o chamar um táxi. Está na hora do comboio. Diz. É tempo da plataforma do adeus.
Antes o tio recordou-me de novo: estou a ficar tão feio e já tremo de velhice. Ando a sentir-me sempre com margaridas de outono. Espero por ti de novo. Quando voltas? Gostava de te explicar melhor o que me levou a fazer engenharia. Ai eu e os comboios! Não há forma de lhes escapar. E vês? já faço chantagem para que venhas antes que eu não possa. Antes que eu não tenha qualquer história, qualquer comboio.
E foi assim, não foi tio meu? Porque é só isso que quero agora que lhe escrevo: saber se foi assim naquele dia.
Beijo
Sobrinha
Teresa Bracinha Vieira
Junho 2017